ARMANDO CORTEZ
(Lisboa, Portugal, 1928-2002)
Actor, encenador
***
Ao
longo de 50 anos de carreira, representou aproximadamente 150 peças de teatro,
encenou outras 50 e foi responsável pela tradução, adaptação ou co-autoria de
perto de 30 textos dramáticos.
Participou ainda em cerca de 20 séries de televisão, em mais de uma dezena de telenovelas e em, pelo menos, 20 filmes nacionais e estrangeiros, no cinema.
Como grande parte dos actores da sua geração, teve a sua passagem obrigatória pela rádio, dando a voz ao teatro radiofónico.
A par da sua actividade profissional, envolveu-se intensamente, desde 1982, no projecto da Casa do Artista, a que, juntamente com outros colegas, conseguiu dar forma e ver inaugurada em 11 de Setembro de 1999.
***
CARTA DE ARMANDO CORTEZ À SAPATARIA LORD - 1970
Excelentíssimo Senhor Augusto Amorim
Digníssimo
Administrador da Sapataria Lord
Armando
Cortez, actor e cliente da sapataria Lord, de 42 anos de idade e 39/40 de pé,
vem junto de Vossa Excelência expor a seguinte e dolorosa situação:
Há
uns meses, adquiri na conceituada sapataria Lord uns sapatos pretos a que Vossa
Excelência mandou fazer o preço especial de 300 escudos.
Caso
Vossa Excelência não se lembre do modelo, pode recordá-lo facilmente: são
sapatos rigorosamente iguais aos expostos na montra da sapataria Galã, em
saldo, ao preço de 195 escudos.
A
diferença de 105 escudos despendi-a eu com gosto e sincera alegria, pois que
essa verba ia em directo benefício de Vossa Excelência, pessoa que muito estimo
e a quem devo inúmeras atenções.
Não
é isso que está em causa.
O
que está em causa, e até hoje não teve solução satisfatória, é o que passo a
expor:
Esses
sapatos foram comprados para serem utilizados em cena, na peça “A Pobre
Milionária” estreada há meses no Teatro Monumental.
Logo
no inicio da sua utilização, os referidos sapatos, ou melhor, o esquerdo,
passou a romper-me regularmente a meia do mesmo pé, tendo feito esse louvável
trabalho em 6 pares de peúgas de seda, de cerca de 50 escudos cada par.
Já
me importavam, portanto, os sapatos em cerca de 600 escudos, quando me resolvi
a apresentar na “Lord” a minha reclamação.
Fui
pronta e gentilmente atendido, como sempre na casa, e foi-me comunicado que o
caso teria remédio, que seriam os sapatos desmanchados – forrados de novo, pois
era o forro precocemente roto que provocava os buracos nas peúgas.
Disseram-me
ainda, com ar entendido, que além de os forrar de novo, iam aumentá-los um
pouco “para o dedo não tocar”, e a coisa assim ficaria sanada.
Eu
ia ver. E vi, vi de facto os sapatos voltarem como novos e uma factura de 140
escudos para pagar pelo arranjo.
Paguei
e ficaram-me assim os sapatos aumentados no preço e no tamanho.
E,
em vez de andar calçado com sapatos da minha medida (39/40), passei a ostentar
praticamente um submarino em cada pé, tropeçando constantemente, pois que, pelo
preço, os referidos submarinos não podiam vir equipados com periscópio, o que
entendi perfeitamente.
Acrescia,
porém, o facto desagradável de eu ter deixado de poder arrumar os meus
submarinos burguesmente debaixo da cama, mas ser obrigado a recolhê-los
regularmente na Base do Alfeite, o que me ficava um pouco fora de mão por via
terrestre e um pouco fora de pé por via marítima.
Por
essa altura, já eu tinha investido nos sapatos-submarinos cerca de 740 escudos
(300 escudos do preço comercial; 140 escudos na sua transformação em submarinos
e 300 escudos de peúgas inutilizadas).
Nunca
eu lamentaria esta diferença de preço entre estes sapatos e os de 195 escudos
de modelo igual, expostos na sapataria Galã, cujo dono nem conheço e de cujo
irmão nunca fui sequer conhecido, quanto mais amigo.
Nunca
eu lamentaria pois esta ligeira diferença de 545 escudos, se os
sapatos-submarinos não continuassem inexoravelmente, regularmente, ferozmente a
fazer-me buracos noutros tantos pares de peúgas.
Decidi-me
então a voltar à “Lord” e fazer a entrega solene dos sapatos-submarinos a um
empregado de Vossa Excelência que me disse não poder resolver nada porque o Sr.
Nunes estava de férias…
Daqui
inferi que quando o Sr. Nunes está de férias, têm os clientes da “Lord” que
andar descalços, contrariando assim uma ponderada postura municipal e
arriscando-se à respectiva sanção policial.
Esta
situação arrasta-se há já bastantes semanas com todos os perigos inerentes.
É
a solução deste intrincado problema de pés que o signatário pede licença de
colocar nas mãos de Vossa Excelência.
Permitindo-me
sugerir a Vossa Excelência me forneça outro par, ou outro Nunes.
Cumprimentos
pessoais do
Armando
Cortez
in “Armando Cortez -1928-2002”
Sem comentários:
Enviar um comentário