A
CÂMARA DOS DEPUTADOS
A câmara dos deputados
está tendo realmente uma compreensão muito estreita dos seus deveres
parlamentares. Nota-se com espanto que os senhores deputados, ao entrar, não
descalçam as suas botas! Ninguém explica esta reserva. O Sr. Barros e Cunha há
dias tinha calor, e não se pôs em mangas de camisa! Via-se bem antes de ontem
que o Sr. Arrobas estava apertado no seu colete, e no entanto não se
desabotoou! Estranhas abstenções! Porque se coíbem, Santo Deus! Porque se
impõem a inexplicável privação de não beberem cerveja na sala? Que significa
esta falsa compreensão das regalias constitucionais?
Porque não tiram, para
maior comodidade de suas pessoas, a consequência lógica do seu procedimento? Se
se desprenderam de todo o respeito, porque não se desembaraçam das suas gravatas?
Se se atribuíram o direito de dizer injúrias, porque não se dão o direito de
trazer chinelas? Porque conservam uma certa postura de toilette – se têm desabotoado tanto a dignidade? Vamos, meus belos
cavalheiros da injúria franca! Um último passo! Já aniquilaram o decoro, ponham
de lado a polidez. Nem mesmo se prendam com o asseio! Tirem os botins, e atirem
por cima das carteiras, à face do País, essas peúgas de alvura duvidosa!
Desapertem esses coletes, e que a Pátria veja nas pregas das camisas o suor dos
seus eleitos! Venha cerveja! Saltem as primeiras rolhas! Caiam as últimas
injúrias! Ferva a intriga e espumem os bocks!
Ao tilintar dos copos misture-se o embate dos insultos! – É falso, mente! Mais cerveja! Isso é uma bestialidade, fora! Cigarros!
Rompam as disputas de café em atitudes de taberna! Ninguém se coíba! Que o fumo
do tabaco faça uma nuvem às votações – e as nódoas de vinho um comentário aos
projectos de lei! E praguejem, e assobiem, e escarrem! E viva a troça! Hip! hip!
Hip! Hurra! Salta um decilitro! Fora, patife! E lari-ló-lé, ló-lé! Para o
pagode! Oh! legisladores! Oh! homens de Estado! Oh! Feira das Amoreiras!
Pois temos nós obrigação
de respeitar a câmara, quando ela se não respeita? Pois ela vive nas assuadas
indecorosas – e há-de exigir que nos curvemos como se ela vivesse nas ideias
elevadas?
Porque vos havemos de
respeitar, dizei? Pelo saber que não tendes? Pela dignidade que renegastes?
Lêem-se os extractos de todas as câmaras do mundo, e em todas há seriedade e
discussão inteligente; em todas se trabalha, se pensa, se organiza, se legisla.
Entre nós vemos, durante um mês, arrastar-se uma discussão sobre personalidades
de regedores; e o que se debate é se se fez ou se não fez a estrada da Covilhã,
e se o Governo comprou ou não comprou exemplares de um Elogio do Sr. Ávila! E todas as questões úteis e altas desprezadas,
e uma perpétua ventania de insultos trocados, e o abandono de toda a ideia, o
ódio de todo o trabalho, o esquecimento de toda a decência! E no entanto a
Espanha mede, polegada por polegada, a porção da nossa liberdade que se vai
enterrando no lodo!...
Sois tão criminosos que
nos fazeis perder o riso. E no entanto ele é a nossa vingança! E é
indispensável que se mantenha sempre pronto, amargo, cruel, para que em nome da
consciência ofendida vos vamos expondo, querendo Deus, trémulos e grotescos, ao
escárnio da multidão.
Agosto 1871 ...
in “Uma Campanha Alegre” –
Eça de Queirós
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