AUGUSTO ABELAIRA
(Coimbra, Portugal, 1926 - Lisboa, 2003)
Dramaturgo,
tradutor, jornalista
***
QUEM ERA
NA VERDADE, FERNANDO PESSOA? (II)
(continuação)
É
claro que se quis dizer isso tudo e muito mais. E muito menos também, porque
postas as coisas naquele pé, não iríamos talvez parar muito longe. (Sejamos
sinceros: Não é que não pudéssemos chegar a resultados interessantes. Confessemos
honestamente: não nos convêm, por agora).
a)
Perigoso,
digo eu, observar Pessoa pelo que ele próprio diz de si. Perigoso, mas não
desprezível, acrescentarei. «Por muito que um homem aprenda, nunca aprende a
ser quem não é» diz ele algures. E verdade (pelo menos em parte, porque sem
dúvida o homem que não aprendeu a ser quem não é, pode no entanto virar do
avesso aquilo que é – por contraste ao que é).
Por
isso mesmo, acrescentarei: Pode dar-se o caso de Fernando Pessoa não mistificar
e no entanto não dizer aquilo que é, pelo simples facto de sinceramente dizer
aquilo que julga ser. Daqui, que a própria sinceridade de Pessoa nos possa
enganar.
b)
- Seria
interessante, sem dúvida, ver o que ele diz
dos
outros. Certamente que estudando os outros, os outros
seriam o que ele
quisesse que fossem, isto é: personalidades heterónimas. Faria deles o que faz
da História nas suas sociológicas considerações, em que às duas por três acaba
por se esquecer completamente da História objectiva, para ver nela o que lhe convém
para a demonstração do que pretende – (o que aliás sucede talvez com todos os
historiadores, sejam eles gregos ou troianos, comentará o leitor; e eu não
terei outro remédio senão baixar a cabeça.
Mas não haverá em Pessoa
mais subjectivismo – pelo menos um subjectivismo mais consciente – que nos
historiadores vulgares e não vulgares)? «A inteligência dispersa-nos» diz. De
modo que, quando Pessoa inteligenciasse acerca dos outros, dispersar-se-ia.
Ver-se-ia em cada um dos outros, um dos estractos da sua dispersão. O pior, o
pior, é que Pessoa nunca se dá ao trabalho de fingir, sequer, que fala dos
outros…
c)
- E que diz
ele dos problemas em geral? Sim, não há dúvida que reside aqui o seu forte
(como ensaísta). E não há dúvidas também que era aqui que me convinha chegar.
Mas não se vá pensar que vou interpretar o que ele diz, sistematizar suas
ideias, ordená-las em premissa maior e premissa menor e depois concluir:
Fernando Pessoa é isto assim e assado.
Não.
Contra o costume – nestes casos – não pretenderei fazer um sistema das ideias
de Pessoa. Antes muito pelo contrário irei dizer que espírito e sistema é coisa
que não existe nele e que se há alguma coisa que eu lhe veja é pura e
simplesmente falta de convicções, pura incoerência.
(continua)
in ‘Mundo Literário – Semanário de Crítica e
Informação Literária, Científica e Artística’ – 1947