JOSÉ CARDOSO PIRES
(Vila de Rei, Portugal, 1925 - Lisboa, 1998)
Escritor, crítico literário
***
JOÃO ABEL MANTA (IV)
(continuação)
Não. Nem crítica programática aos contrastes do mundo, nem elegia de um mundo sem conflitos. As evidências de João Abel são terrivelmente mais profundas e universais. Uma colecção dos seus desenhos é um cadastro simbólico do homem de prestígios provincianos, abstractos, uma paisagem mítica que a moral doméstica desejaria contemplar na sala de estar depois do café e da segunda leitura do Diário de Notícias.
Desejaria – se não fosse um certo clima ameaçador que a envolve, um certo travo à brincadeira que pode sair cara. Porque quanto ao mais, tudo como deve ser: andaimes lineares, objectos que «se percebem» e sem fantasias de «modernices» (no dicionário caseiro), estruturas materiais impecáveis, operários a uma distância decente, burgueses no quadro próprio, com o chefe patriarcalmente sentado e a respectiva esposa submissamente de pé… e a uma ponta, em primeiro plano, um cidadão do máximo respeito indicando com o ponteiro a base da harmonia em sociedade: as leis de Mendel, as virtudes dos cromossomas – numa palavra, a Razão de Sangue, a razão dos privilégios marialvas.
Reconhece-se por consequência uma crítica de perspectiva ambiciosa ao universo conceptual do cidadão provinciano. Nem Eça, longe disso, nem o próprio Pessoa, denunciaram tão ousadamente como João Abel o anacronismo dessa organização mental.
Nem conheço crítico ou estudioso que tivesse provado, como ele provou com as suas ilustrações para a Carta de Guia de Casados, a descabelada moral marialva do bem-falante D. Francisco Manuel de Melo.
(Fim)
in “Cartilha do Marialva”
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