Extractos
da carta dirigida a José Pacheco, director da revista literária “Contemporânea”,
pelo poeta Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa):
Meu querido José Pacheco:
Venho escrever-lhe para o felicitar pela
sua “Contemporânea” para lhe dizer que não tenho escrito nada e para pôr alguns
embargos ao artigo do Fernando Pessoa.
Quereria mandar-lhe também colaboração.
Mas, como lhe disse, não escrevo. Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que
estou decadente, e já o não sou.
(…)
Agora o artigo do Fernando. Com o intervalo entre a primeira palavra desta
carta e a primeira palavra deste parágrafo, já quase me não lembra o que é que
lhe queria dizer do artigo. Talvez pensasse em dizer exactamente o que vou
escrever a seguir. Enfim, prometi, e digo o que sinto agora, e segundo os
nervos deste momento.
Continua o Fernando Pessoa com aquela
mania, que tantas vezes lhe censurei, de julgar que as coisas se provam. Nada
se prova senão para ter a hipocrisia de não afirmar. O raciocínio é uma timidez
— duas timidezes talvez, sendo a segunda a de ter vergonha de estar calado.
Ideal estético, meu querido José Pacheco,
ideal estético! Onde foi essa frase buscar sentido? E o que encontrou lá quando
o descobriu?
(…) Estética, José Pacheco? Não há beleza,
como não há moral, como não há fórmulas senão para definir compostos. Na
tragédia físico-química a que se chama a Vida, essas coisas são como chamas —
simples sinais de combustão.
(…) O resto é o mito das Danaides, ou outro
qualquer mito — porque todo o mito é o das Danaides, e todo o pensamento
(diga-o ao Fernando) enche eternamente um tonel eternamente vazio.
(…) Relembro saudosamente — aqui do Norte
improfícuo — os nossos tempos do «Orpheu», a antiga camaradagem, tudo em Lisboa
de que eu gostava, e tudo em Lisboa de que eu não gostava — tudo com a mesma
saudade.
Saúdo-o em Distância Constelada. Esta carta
leva-lhe a minha afeição pela sua revista; não lhe leva a minha amizade por si
porque V. já há muito tempo aí a tem.
Diga ao Fernando Pessoa que não tenha
razão.
Um abraço do camarada amigo
Álvaro de Campos
Carta enviada à revista “Contemporânea”- Arquivos da “Casa
Fernando Pessoa”.
Imagem: Álvaro de Campos visto por Almada Negreiros
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