NO FUNDO SOMOS BONS MAS ABUSAM DE NÓS
O comum das gentes (de
Portugal) que eu não chamo povo porque o nome foi estragado, o seu fundo comum
é bom. Mas é exactamente porque é bom, que abusam dele. Os próprios vícios vêm
da sua ingenuidade, que é onde a bondade também mergulha. Só que precisa sempre
de lhe dizerem onde aplicá-la. Nós somos por instinto, com intermitências de
consciência, com uma generosidade e delicadeza incontroláveis até ao ridículo,
astutos, comunicáveis até ao dislate, corajosos até à temeridade, orgulhosos
até à petulância, humildes até à subserviência e ao complexo de inferioridade.
As nossas virtudes têm assim o seu lado negativo, ou seja, o seu vício. É o que
normalmente se explora para o pitoresco, o ruralismo edificante, o sorriso
superior. Toda a nossa literatura popular é disso que vive.
Mas, no fim de contas, que
é que significa cultivarmos a nossa singularidade no limiar de uma «civilização
planetária»? Que significa o regionalismo em face da rádio e da TV? O rasoiro
que nivela a província é o que igualiza as nações. A anulação do indivíduo de
facto é o nosso imediato horizonte. Estruturalismo, linguística, freudismo,
comunismo, tecnocracia são faces da mesma realidade. Como no Egipto, na Grécia,
na Idade Média, o indivíduo submerge-se no colectivo. A diferença é que esse
colectivo é hoje o puro vazio.
VERGÍLIO FERREIRA (Gouveia, Portugal, 1916 – Lisboa,
1996), escritor, filósofo, ensaísta e professor, in “Conta-Corrente 2” (Citador).
Imagem: “O Calcanhar de Aquiles” (1870) de Rafael
Bordalo Pinheiro (Lisboa, Portugal, 1846 – 1905), caricaturista, jornalista,
desenhador, ceramista e professor.
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