quinta-feira, 28 de setembro de 2017

NO FUNDO SOMOS BONS MAS ABUSAM DE NÓS

 

 
NO FUNDO SOMOS BONS MAS ABUSAM DE NÓS

O comum das gentes (de Portugal) que eu não chamo povo porque o nome foi estragado, o seu fundo comum é bom. Mas é exactamente porque é bom, que abusam dele. Os próprios vícios vêm da sua ingenuidade, que é onde a bondade também mergulha. Só que precisa sempre de lhe dizerem onde aplicá-la. Nós somos por instinto, com intermitências de consciência, com uma generosidade e delicadeza incontroláveis até ao ridículo, astutos, comunicáveis até ao dislate, corajosos até à temeridade, orgulhosos até à petulância, humildes até à subserviência e ao complexo de inferioridade. As nossas virtudes têm assim o seu lado negativo, ou seja, o seu vício. É o que normalmente se explora para o pitoresco, o ruralismo edificante, o sorriso superior. Toda a nossa literatura popular é disso que vive.

Mas, no fim de contas, que é que significa cultivarmos a nossa singularidade no limiar de uma «civilização planetária»? Que significa o regionalismo em face da rádio e da TV? O rasoiro que nivela a província é o que igualiza as nações. A anulação do indivíduo de facto é o nosso imediato horizonte. Estruturalismo, linguística, freudismo, comunismo, tecnocracia são faces da mesma realidade. Como no Egipto, na Grécia, na Idade Média, o indivíduo submerge-se no colectivo. A diferença é que esse colectivo é hoje o puro vazio.

 
VERGÍLIO FERREIRA (Gouveia, Portugal, 1916 – Lisboa, 1996), escritor, filósofo, ensaísta e professor,  in “Conta-Corrente 2” (Citador).

Imagem: “O Calcanhar de Aquiles” (1870) de Rafael Bordalo Pinheiro (Lisboa, Portugal, 1846 – 1905), caricaturista, jornalista, desenhador, ceramista e professor.

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