sexta-feira, 15 de setembro de 2017

PAIXÃO PELOS RITUAIS

 
 

 
PAIXÃO PELOS RITUAIS

Natália Correia bate-se pela recuperação do sagrado, do politeísmo, do feminismo, do barroco, do diferente, e pelo repúdio da crucificação, do consumismo, do descontrolo demográfico, da arrogância  indiferenciadora.
 
«Como atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na vitória sobre a fé dos outros?» interrogava-se.

Os grandes mitos portugueses encontraram nela uma celebrante incomum: o mito do Andrógino (o ser completo, uno e plural), do Desejado (o que contém a resistência, não a desistência), de Pedro e Inês (a paixão, a volúpia pela morte), da Ilha (o espaço da esfinge, da iniciação), do Espírito Santo (metáfora de um socialismo de raiz portuguesa), a todos dedicando obras próprias, reformuladas à dimensão do futuro.

 As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação. Sabia indignar-se com grandeza – e indignar os outros à sua altura.

Muitas vezes perdia a cabeça connosco e nós com ela. Sufocava-nos. Muitas vezes apetecia-nos fugir. Não aguentávamos a sua lucidez, a sua exigência, o seu empenhamento, a sua implacabilidade. Muitas vezes tentámos matá-la em nós para sermos nós – até isso nos ajudou. Era uma mulher inigualável. Nos caprichos, nos excessos, nas iras, nas premonições, nos exibicionismos, na sedução, na coragem, na esperança. Cantava, dançava, declamava, improvisava, discursava, polemizava como poucos entre nós alguma vez o fizeram, o somaram.

 
FERNANDO DACOSTA (Caxito, Angola, 1945), romancista, dramaturgo e jornalista, in “O Botequim daLiberdade”

NATÁLIA CORREIA (Fajã de Baixo, São Miguel, Açores, Portugal, 1923 — Lisboa, 1993), poetisa, escritora, política, figura marcante da cultura e da literatura portuguesas contemporâneas.

Imagem: Natália Correia - escultura esculpida em pedra vulcânica dos Açores – Parque dos Poetas – Oeiras – Portugal.

 

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