PAIXÃO PELOS RITUAIS
Natália
Correia bate-se pela recuperação do sagrado, do politeísmo, do feminismo, do
barroco, do diferente, e pelo repúdio da crucificação, do consumismo, do
descontrolo demográfico, da arrogância
indiferenciadora.
«Como
atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas
pela nossa fé na vitória sobre a fé dos outros?» interrogava-se.
Os
grandes mitos portugueses encontraram nela uma celebrante incomum: o mito do
Andrógino (o ser completo, uno e plural), do Desejado (o que contém a resistência,
não a desistência), de Pedro e Inês (a paixão, a volúpia pela morte), da Ilha
(o espaço da esfinge, da iniciação), do Espírito Santo (metáfora de um
socialismo de raiz portuguesa), a todos dedicando obras próprias, reformuladas
à dimensão do futuro.
As
causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as
causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia,
conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação. Sabia indignar-se com grandeza
– e indignar os outros à sua altura.
Muitas
vezes perdia a cabeça connosco e nós com ela. Sufocava-nos. Muitas vezes
apetecia-nos fugir. Não aguentávamos a sua lucidez, a sua exigência, o seu
empenhamento, a sua implacabilidade. Muitas vezes tentámos matá-la em nós para
sermos nós – até isso nos ajudou. Era uma mulher inigualável. Nos caprichos,
nos excessos, nas iras, nas premonições, nos exibicionismos, na sedução, na
coragem, na esperança. Cantava, dançava, declamava, improvisava, discursava,
polemizava como poucos entre nós alguma vez o fizeram, o somaram.
NATÁLIA CORREIA (Fajã de Baixo, São Miguel, Açores, Portugal, 1923 — Lisboa, 1993), poetisa, escritora, política, figura marcante da cultura e da literatura portuguesas contemporâneas.
Imagem: Natália Correia - escultura esculpida em pedra vulcânica dos Açores – Parque dos Poetas – Oeiras – Portugal.
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