JEAN COCTEAU
(França, 1889 - 1963)
Poeta,
romancista, cineasta, dramaturgo, actor
***
O EMBRULHO
VERMELHO
O meu sangue transformou-se em tinta. Era preciso
impedir a todo o custo este nojo. Envenenei-me até aos ossos. Cantava no escuro
e agora é essa mesma canção que me assusta. Melhor ainda: estou leproso.
Conhecem essas manchas de bolor que simulam perfis? Não sei qual o encanto da
lepra que engana o mundo e lhe permite beijar-me. Tanto pior para ele! Já não
me diz respeito. Só mostrei feridas. Fala-se em fantasia graciosa: culpa minha.
É loucura expor-nos inutilmente.
A minha desordem amontoa-se até ao céu. Os que eu amava
estavam ligados ao céu por um elástico. Virava a cabeça... já ali não estavam.
De manhã debruço-me, debruço-me e deixo-me cair. Caio
de cansaço, de dor, de sono. Sou inculto, nulo. Não conheço nenhum número,
nenhuma data, nenhum nome de rio, nenhuma língua, viva ou morta. Tenho zero em
história e em geografia. Sem alguns milagres corriam comigo. Para mais, roubei
os documentos a um certo J.C. nascido em M.L., dia..., morto aos dezoito
anos, depois de uma brilhante carreira poética.
Esta cabeleira, este sistema nervoso mal implantados,
esta França, esta terra, não são meus. Repugnam-me. De noite dispo-os em
sonhos.
Larguei o embrulho. Que me prendam, que me linchem.
Entenda quem puder: Sou uma mentira que
diz sempre a verdade.
Tradução: Filipe
Jarro
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