ANTÓNIO PEDRO
(Cabo Verde, 1909 – Portugal, 1966)
Escritor,
actor, poeta, artista plástico, encenador
***
Duzentos e cinquenta
séculos antes da nossa era, pelo menos, mirou um artista, pela primeira vez, o
branco de uma parede e construiu nela, por suas mãos, servindo-se de incisões e
de tintas, as personagens de um mundo afim do mundo real que o circundava,
semelhantes a elas pelo contorno e pelas formas, mas cujo nascimento,
existência e atitudes forçavam as leis da Natureza, dependendo apenas da sua
vontade e do seu gosto. Era a descoberta da pintura.
Os povos pré-históricos
viviam quase exclusivamente da caça. Os rebanhos das renas e bisontes, o seu
número e prolificidade, constituíam, por certo, para eles, preocupação
primeira. Ferir o macho e caçá-lo, saber a fêmea filhada a garantir, por
compensação, a continuação da espécie indispensável, eram necessidades
obsessivas.
O pintor funcionava, então, como uma espécie de mago. No mistério
profundo das cavernas, algumas com mais de oitocentos metros, desenhava a rena
ferida ou a cópula dos bisontes. O simples facto de os pintar, garantia sobre
eles o seu domínio.
Com ocres vermelho e amarelo retoca a chaga da flecha ou
modelava melhor o contorno de um volume. O que se passava ali, por sua vontade,
representando-se na parede, havia por certo de reproduzir-se na realidade.
O que Freud designa pela omnipotência das ideias, comum às
crianças e aos povos primitivos, levou estes a forçar a Natureza pela
realização da obra de arte. Não era a Natureza que a sugestionava, era ela que tinha
de sugestionar a Natureza, compelindo-a a uma imitação do imaginado.
Obra
de arte? A expressão parece precoce. O conceito que temos de obra
de arte envolve a noção duma realização voluntariamente oferecida a um espectador
sensível. A arte mágica do artista do quaternário destinava-se a outras finalidades,
e escondia-se, tabu, da vista dos profanos. Mas, para o acto mágico, para que ele
fosse possível, bastaria a garatuja convencional do objecto ambicionado.
Se a elegância e a fluidez
do desenho, se o seu vigor extraordinário e emocionante se lhe acrescentam, não
é extremamente ousado arriscar que se não confinava apenas a este serviço religioso
o exercício da pintura, mas o homem já encontrava nele a satisfação de uma necessidade
profunda de carácter individual.
in “Mundo Literário” - 1946
Sem comentários:
Enviar um comentário