terça-feira, 4 de dezembro de 2018

ANTÓNIO PEDRO – A Descoberta da Pintura



ANTÓNIO PEDRO
(Cabo Verde, 1909 – Portugal, 1966)
Escritor, actor, poeta, artista plástico, encenador

***

Duzentos e cinquenta séculos antes da nossa era, pelo menos, mirou um artista, pela primeira vez, o branco de uma parede e construiu nela, por suas mãos, servindo-se de incisões e de tintas, as personagens de um mundo afim do mundo real que o circundava, semelhantes a elas pelo contorno e pelas formas, mas cujo nascimento, existência e atitudes forçavam as leis da Natureza, dependendo apenas da sua vontade e do seu gosto. Era a descoberta da pintura.

Os povos pré-históricos viviam quase exclusivamente da caça. Os rebanhos das renas e bisontes, o seu número e prolificidade, constituíam, por certo, para eles, preocupação primeira. Ferir o macho e caçá-lo, saber a fêmea filhada a garantir, por compensação, a continuação da espécie indispensável, eram necessidades obsessivas. 

O pintor funcionava, então, como uma espécie de mago. No mistério profundo das cavernas, algumas com mais de oitocentos metros, desenhava a rena ferida ou a cópula dos bisontes. O simples facto de os pintar, garantia sobre eles o seu domínio. 

Com ocres vermelho e amarelo retoca a chaga da flecha ou modelava melhor o contorno de um volume. O que se passava ali, por sua vontade, representando-se na parede, havia por certo de reproduzir-se na realidade.

O que Freud designa pela omnipotência das ideias, comum às crianças e aos povos primitivos, levou estes a forçar a Natureza pela realização da obra de arte. Não era a Natureza que a sugestionava, era ela que tinha de sugestionar a Natureza, compelindo-a a uma imitação do imaginado.

Obra de arte? A expressão parece precoce. O conceito que temos de obra de arte envolve a noção duma realização voluntariamente oferecida a um espectador sensível. A arte mágica do artista do quaternário destinava-se a outras finalidades, e escondia-se, tabu, da vista dos profanos. Mas, para o acto mágico, para que ele fosse possível, bastaria a garatuja convencional do objecto ambicionado.

Se a elegância e a fluidez do desenho, se o seu vigor extraordinário e emocionante se lhe acrescentam, não é extremamente ousado arriscar que se não confinava apenas a este serviço religioso o exercício da pintura, mas o homem já encontrava nele a satisfação de uma necessidade profunda de carácter individual.



in “Mundo Literário” - 1946



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