segunda-feira, 12 de março de 2018

RENÉ CHAR – Comunhão formal



RENÉ CHAR
(França, 1907 - 1988)
Poeta

***
Comunhão formal

A imaginação consiste em expulsar da realidade várias pessoas incompletas utilizando as potências mágicas e subconscientes do desejo, para obter o seu retorno sob a forma duma presença inteiramente satisfatória. E é então que nos encontramos no inextinguível real incriado.
O que faz sofrer mais o poeta nas suas relações com o mundo é a falta de justiça interna. O vidro-cloaca de Caliban por detrás do qual os olhos todo-poderosos e sensíveis de Ariel se irritam.
O poeta transforma indiferentemente a derrota em vitória, a vitória em derrota, imperador pré-natal unicamente preocupado com a colheita do azul.
Mago da insegurança, o poeta só tem satisfações adoptivas. Cinza sempre inacabada.
O poeta deve manter a balança igual entre o mundo físico da vigília e o à-vontade terrível do sonho, de modo que as linhas do conhecimento nas quais deita o corpo subtil do poema vão indistintamente dum ao outro destes estados diferentes de vida .
O poema é sempre nupcial.
Homem da chuva e do bom tempo, as tuas mãos de derrota e de progresso são-me igualmente necessárias. O poeta é o homem da estabilidade unilateral.
O poema emerge duma imposição subjectiva e duma escolha objectiva.
O poema é um conjunto em movimento de valores originais determinantes em relações contemporâneas com alguém que esta circunstância tomou inicial.
O poema é o amor realizado do desejo que não finda.
Um ser que se ignora é um ser infinito, susceptível com a sua intervenção de mudar a nossa angústia e o nosso fardo em aurora arterial.
Entre inocência e conhecimento, amor e nada, o poeta estende a sua saúde todos os dias.
O poeta é a génese dum ser que projecta e dum ser que retém. Ao amante pede o vazio, à bem-amada a luz. Este par formal, esta dupla sentinela, dão-lhe pateticamente a sua voz .
Cada um vive até ao crepúsculo que completa o amor. Sob a harmoniosa autoridade dum prodígio comum a todos, o destino particular cumpre-se até à solidão, até ao oráculo .
Convém à poesia ser inseparável do previsível. Do previsível não formulado ainda.
E da vossa necessidade e da vossa volúpia apenas que depende que eu tenha ou não o Rosto da comunicação .
No limiar da inércia, o poeta constrói como a aranha a sua estrada no ar. Em parte oculto a si mesmo, aparece aos outros, nos raios do seu singular ardil, mortalmente visível.
Ser poeta é ter o apetite por uma angústia que ao consumar-se, entre os turbilhões das coisas existentes e pressentidas, provoca, no momento de se encerrar, a felicidade.



in “Seuls Demeurent -1945”- in “Árvore – folhas de poesia” - 1951
Tradução: António Ramos Rosa



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