Carta ao Pai é
uma das obras de Franz Kafka, editada postumamente, onde o escritor revela o
seu talento para entender a alma humana, as causas da relação inquietante com o
seu pai, comerciante judeu, que sempre impôs aos filhos a sua visão do mundo.
As suas emoções em relação ao pai oscilavam entre o ódio e a admiração. Esta
extensa carta com mais de cem páginas manuscritas e que nunca foi enviada ao
seu destinatário, é uma obra de arte, sobretudo na análise do relacionamento
entre pais e filhos:
Querido
pai
“Perguntaste-me
há pouco tempo por que razão digo que tenho medo de ti. Como de costume, não soube
o que responder, em parte precisamente devido ao medo que sinto de ti, mas
também porque para fundamentar esse medo seria preciso entrar em muitos
pormenores, que nem de longe conseguiria ter presentes ao falar. E se tento por
este meio responder-te por escrito, o resultado continuará a ser muito
incompleto, porque também ao escrever o medo e as suas consequências perturbam
a comunicação contigo, e a escala da matéria se situa muito para além da minha
memória e do meu entendimento. (…)
(…)
Para ti, as coisas colocavam-se mais ou menos assim: toda a tua vida
trabalhaste muito, sacrificaste tudo pelos teus filhos, especialmente por mim,
e por isso “vivi à grande”, tive toda a liberdade de estudar o que quis, nunca
tive preocupações materiais nem de qualquer outra ordem. (…)
(…)
Eu era uma criança assustadiça, e apesar disso também teimosa, como são em
geral as crianças. É verdade que a mãe me mimou, mas não acho que fosse uma
criança especialmente difícil. (…)
(…)
Tu, só sabes tratar uma criança à luz da tua própria natureza, com força,
barulho e cólera, e neste caso até achavas que era o método mais adequado, já
que querias fazer de mim um rapaz cheio de força e audácia. (…)
(…)
Lembro-me, por exemplo, de quando nos despíamos juntos numa cabine. Eu, magro, fraco,
esguio; tu, forte, alto, largo. Logo na cabine, já me sentia uma figura
lamentável, não apenas perante ti, mas perante o mundo inteiro, porque tu eras
para mim a medida de todas as coisas. (…)
(…)
Bastava eu mostrar algum interesse por alguém – coisa que, dada a minha
natureza, não acontecia muitas vezes – para tu intervires brutalmente, sem
querer saber dos meus sentimentos e sem respeitar a minha opinião, com
injúrias, calúnias, humilhações. (…)
(…)
Como tinhas sempre muita fome e um gosto especial pela comida, engolias tudo
depressa, quente e em grandes bocados, e eu, pequeno, tinha de me apressar,
fazia-se um silêncio de cortar à faca, só interrompido por exclamações tuas:
“Primeiro come-se, depois fala-se.” (…)
(…)
Era proibido roer os ossos - mas tu roías. Era proibido sorver o vinagre – mas
tu sorvias. (…)
(…)
Por favor, pai, vê se me entendes bem: tudo isto não passaria de pequenas
coisas insignificantes, que só se tornavam humilhantes para mim porque tu, o
homem que era o meu exemplo maior, não obedecias aos mandamentos que me
obrigavas a mim a seguir à risca. (…)
(…) Reconheço que temos os nossos
conflitos, mas há dois tipos de combate. O cavalheirismo, em que se defrontam
dois adversários independentes, e cada um fica só, ganhando ou perdendo
sozinho. E o combate do parasita, que não só pica como suga o sangue do outro
para sobreviver. É o que se passa com o soldado profissional e contigo. És
incapaz de viver, e para te poderes instalar sem preocupações, confortavelmente
e sem remorsos, provas que fui eu quem te tirei a capacidade de viver e a meti
no bolso. Que te importa agora se és ou não capaz de viver, se a
responsabilidade é minha!
Franz Kafka, in “Carta ao Pai”
Franz Kafka, in “Carta ao Pai”
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