sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A Chave Perdida

 
 
 
 
 
 
 
                                    A Chave Perdida


Uma das mais belas histórias ditas de «loucos» é também uma das mais antigas. A sua origem exacta é desconhecida. Contam-na na Índia e na Pérsia. Hoje, longos caminhos percorridos, tornou-se, no Ocidente, um número de palhaços.

Passa-se de noite, numa rua, perto de um candeeiro de iluminação pública (no circo, o candeeiro é substituído por um círculo de luz no solo). Está um homem baixado, o nariz perto do chão, e parece procurar qualquer coisa.

Passa outro homem que lhe pergunta:

- Que procuras?
- Procuro a minha chave.
- Perdeste a tua chave?
- Perdi.
- E perdeste-a aqui?
- Não.
- Então, se a perdeste noutro sítio, porque a procuras aqui?
- Porque aqui há luz.


Jean-Claude Carrière (Hérault, França, 1931), in “Tertúlia de Mentirosos”.
É escritor, realizador e actor.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Instante

 
 
 
 
 
 
 
                                                Instante
 
 
Que faria eu sem este mundo sem rosto sem perguntas
Onde o ser só dura um instante e onde cada instante
Transborda para o vazio o esquecimento de ter existido
Sem esta onda onde por fim
Corpo e sombra juntos se anulam
Que faria eu sem este silêncio poço fundo de murmúrios
Curvando-se a pedir socorro pedir amor
Sem este céu posto de pé
Sobre o pó do seu lastro
 
Que faria eu eu faria como ontem e como hoje
Olhando para a minha janela vendo se não estou sozinho
A errar e a mudar distante de toda a vida
Preso num espaço incontrolável
Sem voz no meio das vozes
Que se fecham comigo.
 
 
 
Samuel Beckett (Dublin, Irlanda, 1906 – Paris, França, 1989). Recebeu o “Prémio Nobel de Literatura” de 1969.
Tradução: Mário Carvalheira
Imagem: pintura do artista surrealista belga René Magritte (1898-1967).

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Elizabeth Cady Stanton

 
 
 
 
Elizabeth Cady Stanton (Nova Iorque, EUA, 1815 – 1902).
 
Foi uma das mulheres americanas líder do movimento pelo direito ao voto e pela abolição da escravatura.
 
Em 1848, Elizabeth Stanton e Susan B. Anthony organizaram a primeira “Convenção para os Direitos das Mulheres” celebrada nos Estados Unidos e, talvez, em todo o mundo.  
 
Foi elaborado o documento “Declaração de Sentimentos”, no qual são mencionadas as injustiças sofridas pelas mulheres.

 Realizou conferências sobre diversos temas, tais como: liberalização da lei do divórcio, a maternidade, os perigos do consumo excessivo do álcool na sociedade.

 Vinte anos após a sua morte, as mulheres adquiriram o direito de votar, alcançando a igualdade politica e social pela qual Elizabeth Stanton havia combatido.
 
Das suas obras, destaque para A Bíblia da Mulher.
 
 
 
 

 
Palavras de Elizabeth Cady Stanton:
 
- A prolongada escravidão da mulher é a página mais negra da história da humanidade.
- A ciência social afirma que o lugar da mulher na sociedade define o nível de civilização.
- Pensava que a coisa principal, para igualar-me aos meninos, era ser instruída e corajosa. Então decidi estudar grego e aprender a montar.     
- A verdade é o único terreno seguro em que podemos pisar.
- E dizer que tudo aquilo que, em mim, teria sido motivo de justo orgulho para o meu pai se eu fosse homem, é para ele profundamente humilhante porque sou mulher.
- O preconceito contra a cor, do qual tanto ouvimos, não é mais forte do que aquele contra o sexo. Ele é produzido pela mesma causa, e manifesta-se da mesma forma.
 
 

 

 

 

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A Eterna Canção

 
 
 
 
 



                             A Eterna Canção


Quando envelhecermos

E meus cabelos loiros tornarem-se cabelos brancos
no mês de maio, em um jardim ensolarado,
aqueceremos nossos velhos ossos trêmulos,
a primavera deixará nossos corações em festa.
Acreditaremos ainda sermos jovens apaixonados
e eu te sorrirei, inclinando a cabeça,
seremos um  adorável casal de velhotes
sentados, a nos contemplar com os olhos pequenos,
mas ainda ternos e brilhantes,
Quando tu estiveres velho e eu velha,
Quando os meus cabelos loiros tornarem-se brancos.



Sobre nosso velho banco, esverdeado pelo musgo,
conversaremos com uma alegria terna e tão doce,
as frases sempre a terminar com um beijo.
Quantas vezes já nos dizemos "Te Amo”?
Então com grande cuidado vamos contá-las.
Recordaremos mil coisas, até mesmo
das tolices ditas e dos pequenos nadas delicados.
Um raio descerá entre os nossos cabelos brancos
feito carícia doce, e rosa pousará.
Sobre o banco de outrora voltaremos a conversar.
E como cada dia te amo mais,


Hoje mais que ontem e bem menos que amanhã.
Que importarão então as rugas do rosto?
O meu amor será mais sério - e sereno.
Imagina que todas nossas lembranças se unem,
As minhas recordações serão também as tuas.
Estas recordações comuns cada vez mais nos envolvem
E sem cessar entre nós tecem outros laços.
É verdade, seremos velhos, muito velhos,
enfraquecidos pela idade,
mas mais forte a cada dia apertarei a tua mão,
Porque vê tu, cada dia eu te amo mais,
Hoje mais que ontem e bem menos que amanhã.



E deste querido amor que passa como um sonho,
Quero conservar tudo no fundo do meu coração,
Reter, se possível for, a impressão demasiado breve,
Para voltar a saborear mais tarde, com lentidão.
Escondo tudo o que dele vem como uma avarenta,
Acumulando as riquezas com ardor para os meus velhos dias,
Serei então rica de uma riqueza rara
Terei guardado todo o ouro dos meus jovens amores!
Assim deste passado de felicidade que termina,
Minha memória devolverá a doçura;
E deste querido amor que passa como um sonho,
Terei conservado tudo no fundo do meu coração.
Quando envelhecermos,
Quando os meus cabelos loiros se tornarem brancos.

 
 
 
Rosemond Gerard Rostang (Paris, França, 1871-1953), poetisa e dramaturga.

 

 



segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Não te vejo

 
 
 

 
 
Não te vejo
 
Não te vejo. Bem sei
que estás aqui, atrás
de uma frágil parede
de ladrilhos e cal, bem ao alcance
da minha voz, se chamasse.
Mas não chamarei.
Chamarei amanhã,
quando, ao não te ver mais
imagine que continuas
aqui perto, ao meu lado,
e que basta hoje a voz
que ontem eu não quis dar.
Amanhã... quando estiveres
lá atrás de uma
frágil parede de ventos,
de céus e de anos.
 
 
Pedro Salinas, (1891-1951) poeta espanhol
Imagem: pintura de Leonardo da Vinci

 

domingo, 26 de outubro de 2014

Aristófanes

 
 
 
 

Aristófanes (447 a.C. – 385 a.C.) nasceu em Atenas, Grécia.
É considerado o mais brilhante autor de comédias da literatura grega.
Utilizou o teatro como instrumento de intervenção nas questões sociais, politicas, artísticas e religiosas da sua época.
Foi um crítico intransigente da pompa, da impostura e da corrupção.
Foram tratados na sua obra temas importantes da época, tais como: os métodos de educação, o papel da mulher na sociedade e o surgimento da classe média.
Escreveu mais de 40 peças, das quais apenas 11 são conhecidas.
Algumas das suas obras: Os Cavaleiros, A Paz, A Assembleia de  Mulheres, Um Deus Chamado Dinheiro, As Nuvens.

 

Palavras de Aristófanes:

“Nossa pátria é onde nos sentimos bem.”
 

Excerto da comédia grega “As Aves”:


CORO: Voamos alto e temos bons olhos! Daqui é possível avistar uma árvore diferente, que só cresce entre os homens: ela floresce mentiras na primavera e quando o inverno chega, seus ramos não soltam folhas e sim, flechas de violência.


CORIFEU: Vemos também regiões sombrias, onde os homens bons convivem com os corruptos. Quando a noite cai é preciso cuidado, pois a desconfiança ronda nas trevas… Este é o lado escuro da vida humana.


Aristófanes, in “As Aves”.

sábado, 25 de outubro de 2014

Não Deixes Que Metam o Nariz na Tua Vida

 
 
 
 
 

                  
 
       Não Deixes Que Metam o Nariz na Tua Vida
 
 
Quando falas ou simulas falar de ti próprio e amalgamas passado, presente, futuro, há sempre os que perguntam se o que contaste é verdade ou não. Nunca indagam se vai ser verdade.
 
O que lhes interessa é saber, com a curiosidade dos intriguistas, se o que se passou (ou parece ter-se passado) se passou mesmo contigo. É um erro de gente vulgar. Parasitários ou não, qualquer invenção ou patranha, qualquer «mentir verdadeiro» é acepipe biográfico, é pretexto para te enfileirarem na nulidade biográfica que é a deles próprios e tecerem incansavelmente histórias a teu respeito.
 
Não te deixes seduzir pelo gosto da conversa. Essa pequena gente não merece a mais pequena atenção, nem tu precisas de espectadores para o salutar exercício diário de falar por falar.
 
(...) Não deixes que metam o nariz na tua vida. Caso contrário, vais ficar cheio de gente, com a sua vida escassamente interessante. O tombo da vida vulgar já foi feito por escritores como Camilo. E tenho a impressão de que, no essencial, a vida vulgar continua a mesma.
 
Desunha-te a escrever (olha que já tens pouco tempo!), mas fá-lo com a discrição e a reserva de quem não se dá às primeiras. É outro exercício salutar.
 
 
 
 

Alexandre O'Neill i(Lisboa, Portugal, 1924 – 1986), in "Uma Coisa em Forma de Assim".


sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Quebrou-se a cadeia do sangue

 
 
 
 
 


                             Quebrou-se a cadeia do sangue

 
 
    Quebrou-se a cadeia do sangue
o filho que nos habitou
já se despediu
 
 
Luísa Neto Jorge, in Poesia
 
 

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Todo o dia vivi com a tua ausência

 
 
 
 
 

        Todo o dia vivi com a tua ausência


Todo o dia vivi com tua ausência melhor dizendo
todo o dia vivi da tua ausência já que os
terramotos
e outros desastres internacionais
não me distraíram de ti


eu sou um homem do mundo interessa-me
a revolução no Paquistão a falta
de revolução no Yorkshire onde
vi uma vez gente a chorar
de fome ou de raiva nem mais


como é então possível
entre as tempestades ou calmarias
que vêm a dar no mesmo em
certo ponto de vista eu


não esquecer a tua firmeza
a aparência suave que tens
e tudo ser como o teu cheiro depois de amar
em vez de amar ser como o teu cheiro?

 
Juan Gelman (1930-2014) poeta argentino.
Imagem: pintura de Vincent Van Gogh

 


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Ouve, Meu Anjo

 
 
 
 
 

Ouve, Meu Anjo

 
Ouve, meu anjo:
Se eu beijasse a tua pele?
Se eu beijasse a tua boca
Onde a saliva é mel?

Tentou, severo, afastar-se
Num sorriso desdenhoso;
Mas aí!
A carne do assassino
É como a do virtuoso.

Numa atitude elegante,
Misterioso, gentil,
Deu-me o seu corpo doirado
Que eu beijei quase febril.

Na vidraça da janela,
A chuva, leve, tinia…

Ele apertou-me cerrando
Os olhos para sonhar -
E eu lentamente morria
Como um perfume no ar!

 

António Botto, in “Canções”

 
 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Vou-me Embora pra Pasárgada

 
 
 
 
 
 
 

Vou-me Embora pra Pasárgada

 

 

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Manuel Bandeira (Recife, Brasil, 1886 – Rio de Janeiro, Brasil, 1968), in “Bandeira a Vida Inteira”.
 

 
 

 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Cancioneiro Popular – (XIV)

 
 
 
 
 
 
 

As Flores

 

 

A rosa tem vinte folhas,
o cravo têm vinte e uma.
Anda a rosa em demanda
Porque o cravo tem mais uma.

 
Eu sou cravo, tu és rosa,
Qual de nós valerá mais?
Eu, cravo, pelas janelas;
Tu, rosa, pelos quintais.

 
- Manjaricão da janela,
Que tendes, que estais tão murcho?
- Foi ano muito seco,
Ficar eu verde foi muito.

 
O alecrim desta terra
Não é como o da minha.
Este tem a folha larga,
O meu tem-na miudinha.

 
Ó alecrim, rei das ervas,
Quem te dispôs no caminho?
Quantos passam e não passam
Todos tiram seu raminho.

 
O cravo tem vinte folhas,
A rosa tem vinte e uma:
Anda o cravo à demanda
Por a rosa ter mais uma.

 
Rosa branca, toma cor,
Não sejas tão desmaiada,
Que dizem as outras rosas:
- Rosa branca não val'nada

 
Contarei às flores
Todo o meu sofrer
Porque sei que as flores
O não vão dizer.

 

Cancioneiro Popular Português de J. Leite de Vasconcellos
Imagem: quadro da pintora brasileira Maria José Marinho.


MALMEQUER

MALMEQUER Português, ó malmequer Em que terra foste semeado? Português, ó malmequer Cada vez andas mais desfolhado Ma...