segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Carta de Amália Rodrigues a Vitorino Nemésio

 
 
       
              
                                   

 
                  Carta de Amália Rodrigues a Vitorino Nemésio

 
 
 
Ai meu querido professor
O senhor fez-me chorar
Apesar do bom humor
Com que se quis disfarçar.
Não se pode ser mais triste
Nem ter-se maior razão
Em tudo aquilo que disse,
Do pobre deste país.
Também eu, senhor professor,
Estou triste como o senhor,
Sem poder desabafar
Por não saber versejar.
Mas não me posso calar
Falo comigo sozinha:
Aonde a terra que eu tinha?
Aonde os heróis que amava?
Ou eu andava enganada
Amando o que muito amei?
Francamente já não sei
Aonde está a razão.
Só me dói o coração,
E o coração não engana.
A mim nunca me enganou
De si sempre ele gostou!
E continua a gostar.
Por isso me fez chorar;
Chorou o meu coração
Que lhe sentiu a razão.
Ai meu querido professor
Eu nunca fui sua aluna
Não tenho instrução nenhuma,
Como é que posso entender
O que o senhor quis dizer
Sem saber ler nem escrever?
Há coisas, senhor professor,
Que até se entendem melhor
Se se não é complicado.
Há quem, por ter estudado
Tudo o que outros escreveram,
Entre as letras se perderam,
Já não sabem sequer quem são;
Perderam o coração
Que não se deve perder...
Renego a preparação
De gente tão preparada,
De angústias fazedores
Tudo em nome da justiça
[Desculpe mas digo Chiça!
E eu não sou malcriada]
Mas há coisas que por feias
Dizem melhor das ideias
Que nos passam pela cabeça...
A mim, faltam-me argumentos
Mas ficam-me os sentimentos:
Com eles gosto de si,
Com eles o distingui,
Sem saber ler nem escrever!

 
 
Amália Rodrigues (Lisboa, Portugal, 1920-1999), in “Versos”.
Foi considerada uma das mais brilhantes cantoras do século XX.
Vitorino Nemésio (Ilha Terceira, Açores, Portugal, 1901-1978).
Foi poeta, escritor e professor universitário.

 

2 comentários:

  1. Maravilha! Adoro Amália Rodrigues. Parabéns!

    Lígia Beltrão

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    Respostas
    1. Muito obrigado Lígia Beltrão.
      Amália está no nosso coração.
      Um abraço
      José Eduardo Taveira

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