CARLOS HARRINGTON
(Lisboa, Portugal, 1870 – 1916)
Cantador e poeta
espontâneo
Boémio impenitente, que
passou a sua curta vida em continuada estúrdia foi também figura de destaque no
processo da evolução do fado.
Dotado de um poder de
improvisação e de um sentido de oportunidade raros, a sua veia poética
permitia-lhe glosar quaisquer motes com extrema facilidade, produzindo uma
torrente de décimas, motivo pelo qual foi conhecido por o “Bocage do Fado”.
Cantando num estilo
sentimental a sua poesia recheada de conceitos, Carlos Harrington foi, além de
cantador e poeta espontâneo, um homem de alma nobre e enternecida, que teve
como inseparável companheira uma cadelinha (a Pérola).
Desapareceu
prematuramente do número dos vivos, com 46 anos, ou não tivesse ele presidido
ao “Grupo dos Desgraçados” de que foi secretário outro boémio incorrigível,
Augusto Bastos. Reunia-se esse grupo de amigos da vida airada numa casa de
pasto de um tal António Ribas, conhecida por a Desgraça devido a estar situada num prédio das Escadinhas da Rua de
Santa Justa, esquina da Rua da Madalena, que fora pasto de um pavoroso
incêndio, e também por causa da sua pouca clientela.
O “Grupo dos Desgraçados”
realizando ali aos sábados suculentas jantaradas de cabrito assado e de belas
galinhas do campo, conseguia ir mantendo aberta a casa, onde após as comedorias
e com o sentimentalismo exacerbado pelas libações, o bom Carlos Harrington dava
o lamiré para a função, com a sua frase sacramental: “Vou pregar o meu
sermão!”.
A partir daí as cantigas sucediam-se na sua voz melancólica,
escutadas com enlevo pelos companheiros.
E a rapiocada não terminava às vezes
ali: alta madrugada, iam todos
para a Floresta, a adega que ficava ao lado do também desaparecido Café
Martinho, vizinha do Teatro Nacional de D. Maria II e lá continuava a cantoria
até ao romper do dia.
Frequentador assíduo do
Águia Roxa, da Estrada de Sacavém, Carlos Harrington participou na festa de
homenagem a D. João da Câmara, realizada nesse retiro a propósito da 15.ª
representação do drama Alcácer- Quibir
daquele dramaturgo. Nessa festa, como aliás noutras ocasiões, acompanhando-se à
guitarra, improvisou com mote de Henrique Lopes de Mendonça:
Se
foi Alcácer-Quibir
A
perda da nossa glória,
Tal
nome hoje representa
A mais completa vitória.
I
Se um poeta é uma estrela
E a poesia um firmamento,
De D. João o talento
Compõe a estrela mais bela.
Inspirou-me a luz singela
Dessa lira e o seu sentir,
Mas não posso definir
Qual tomei como pretexto,
Se foi D. Afonso sexto
Se foi Alcácer-Quibir.
II
Em versos cadenciosos
E de sublime primor
Burila o grande escritor
Um dos fastos lutuosos.
Matizam tão bem a História
Que na chaga da memória
Vertem bálsamo e prazer
Fazendo mesmo esquecer
A
perda da nossa glória.
III
Mas de que podem servir
Cantos feitos num momento
Saudando o fino talento,
Cantor de Alcácer- Quibir!
É dessa estrela a luzir
Que a minha canção alenta,
E com voz bem rouca e lenta
Eu direi com alegria,
Tudo o que há em poesia
Tal
nome hoje representa
IV
Dos notáveis escritores
O seu nome é decantado
Tendo o caminho alfombrado
De frescas e belas flores.
Eu, um dos admiradores,
Ergo um brinde à pura glória
Desse que cantou a História
Com vigor e singeleza,
É da musa portuguesa
A
mais completa vitória
in
“Lisboa, o Fado e os Fadistas” de Eduardo Sucena
Imagem: Cartaz do Ciclo “A Cantar e a Contar”, inserido
na programação “Há Fado no Cais”, produzido pelo CCB.