OS RETIROS DAS HORTAS
No dealbar do século XX,
Lisboa, como de resto outras capitais da Europa, era ainda, sob o ponto de
vista social, uma cidade de contrastes chocantes. O fado, no entanto, lograra
já libertar-se, em grande parte, das áreas marginais, instalando-se nas
sociedades recreativas e conquistando a simpatia de gente de trabalho das mais
variadas profissões, além dos boémios, seus indefectíveis cultivadores.
Mas o processo da sua
higienização começara muito antes, na verdade anteriormente a 1846, com a saída
para as hortas, aos domingos e dias santos, de cantadores, tocadores e simples
apreciadores.
Vinha de longe esse hábito
lisboeta das rapiocas no campo. Há notícia de em fins do século XVIII,
princípios do século XIX, terem existido locandas largamente concorridas em
Sete Rios, Laranjeiras, Lumiar e Loures, bem como das famosas patuscadas em
Belas, pela mesma época, e das frescatas do tempo de D. Miguel.
Utilizando os
mais variados transportes, desde os burros de aluguer do Poço do Borratém e do
Arco do Bandeira até à carruagem, passando pela caleche, pela tipóia, pela
vitória e pelo breque, os lisboetas já então abalavam em animados grupos para
os retiros de fora de portas, onde o vinho jorrava dos canjirões e a comida
farta e bem apaladada não dispensava o acompanhamento de salada de alface, que
fez deles os alfacinhas.
As hortas foram, com
efeito, durante largos anos, o regalo das famílias da capital, que naqueles
dias debandavam rumo aos arrabaldes para, em ambiente rústico, esquecerem as
agruras da vida e desfrutarem as excelências do ar puro campesino.
Diz José Pedro do Carmo
que as hortas “marcavam o seu dia grande às quartas-feiras de cinzas”. Então a
cidade despovoava-se e os campos circunvizinhos, onde houvesse locanda, adega,
restaurante, enchiam-se de gente alegre e folgazã para quem os comes e bebes
constituíam o atractivo número um – mas não o único. Na verdade, segundo aquele
autor, os retiros “tinham as suas características muito próprias, como o jogo
do chinquilho, os cegos e respectivos moços a cantarem modinhas, acompanhadas à
guitarra e à viola; o canjirão e as inseparáveis canecas; a poesia do cenário
verdejante e o chiar da nora movida pelo esforço vagaroso do boizinho com os
olhos vendados; o perfume natural das emanações do campo, sempre viçoso, e para
remate o canto das avezinhas sobre as ramadas que formavam os caramanchões a
abrigar-nos daquele sol ardente das tardes de Agosto.”
Não admira, pois, que com
todos esses atributos os retiros das hortas atraíssem o lisboeta de qualquer
condição social, simultaneamente divertido e sentimental, e que o fado lá
encontrasse ambiente propício para se fazer ouvir, quer em reunião de gente
modesta quer em pândegas que deram brado, em que participaram fidalgos,
artistas, boémios, cantoras e bailarinas do S. Carlos e actrizes.
Foram muitos os retiros
das hortas, uns mais famosos que outros, que coexistiam ou se sucederam.
Cantava quem queria ou
quem sabia mas obedecendo ao puro espírito de amadorismo, de desprender ternura
e beleza, incompatíveis com deselegantes interesses. Dava-se inteira e
abertamente. E com que fervor! Exibia-se por amor da arte, no alcandor do
espírito deliciando as assistências com delicados requebros de supremo e
donairoso encantamento. Quantas vezes a guitarra soluçava o acorde e do lugar
inesperado espontânea voz, masculina ou feminina, acudia impetuosa, veemente,
ufana, cortando o ar em aleluias, espiritualizando a letra! Mimosos galanteios
surpreendiam os presentes e os idílios acalentavam seu início em tom de rima.
Ocorre-me uma quadra que ali ouvi e a que uma voz melancólica imprimiu
particular brilho:
Toma
lá colchetes d´ouro
Aperta
o teu coletinho;
Coração
que é de nós dois
Deve
andar conchegadinho.
Alguns dos nomes: Perna de
Pau (da Gertrudes), Horta das Tripas à Estefânia, Ezequiel ao Dafundo, Miséria
na Estrada de Palhavã, Viteleira na Travessa dos Carros, Colete Encarnado (da
Joana), José dos Passarinhos em Alcântara, Quebra Bilhas no Campo Grande.
in “Lisboa, o Fado e os Fadistas” de Eduardo Sucena
(excertos)
Imagem: Retiro “Os Pacatos na Estrada de Sacavém” –
gravura de J.Novaes
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