FERNANDO DACOSTA
(Caxito,
Angola, 1945)
Romancista,
dramaturgo e jornalista
POETAS
SUICIDADOS
Viajar com Natália Correia
era uma aventura ora apaixonante, ora desesperante, tais os imprevistos, os
incidentes, os caprichos, as exaltações, os temores, que a possuíam.
Uma noite, vínhamos de
Tróia de um encontro de escritores ibéricos, ela dispara-me enquanto
atravessávamos o Sado num ferry-boat:
«Não posso passar por Setúbal». Porquê, pergunto-lhe, estupefacto. «Uma cigana
disse-me que este mês não devia entrar em nenhuma cidade com rio, além de
Lisboa.»
Ironicamente, afianço-lhe:
«Mas não passamos por lá. Há uma auto-estrada à saída do barco que nos leva por
outro lado.»
Não havia – só bastantes
anos mais tarde seria construída.
Percorremos calmamente Setúbal sem que ela,
na sua incomensurável inocência, se apercebesse de nada. «É bonita esta
auto-estrada, tem casas à volta, nem parece uma auto-estrada», comentou.
«Apetece-me
champanhe para o almoço!», exclamou num fim de manhã de domingo. Regressávamos
a Lisboa depois de uma emocionante deslocação a Coimbra para apresentar um
livro do poeta António Vilhena. Na véspera, estudantes proporcionaram-nos, em
barcos engalanados de flores e dosséis, um passeio pelo Mondego – que a
deslumbrou.
Jovens
vestidos à época de Pedro e Inês tangem alaúdes e guitarras. Natália, uma mão
aberta na frescura da água, outra fechada na haste de uma rosa, entoa (possuía
uma voz magnífica) versos de cantigas de amigo. Populares acenam-lhe das
margens sorrisos e simpatias.
Toda
a natureza – pessoas, rio, peixes, vegetação, pássaros -, parece unir-se-lhe em
sinfonia única, cósmica.
No
Choupal, sentada num banco de pedra, lançará, após dizer poemas exaltando
amantes trágicos, a ideia de um ciclo sobre poetas suicidados.
«Os
grandes criadores acabam por desistir de viver. A inveja, o ciúme, a maldade, o
cinismo, a hipocrisia, que os cerca amargura-os a tal ponto que lhes apressa a
morte, lhes faz apetecer a morte. O José Régio foi um dos que sucumbiram, tal a
campanha de ofensas que lhe moveram. Ele será o primeiro homenageado!»
Pressentindo
que lhe poderia acontecer o mesmo, Natália tentava, dessa maneira, esconjurar,
combatendo-as, as forças negativas que, à distância, a rondavam.
Um
estudante grava numa árvore, ante o silêncio comovido do grupo, as palavras:
«Ciclo dos poetas suicidados.»
O
desaparecimento, pouco depois, de Natália Correia «suicidar-nos-à», por muito
tempo, a todos nós.
in “Botequim da Liberdade”
Imagem:
pintura de Louis Léopold Robert (Suíça, 1794-1835)
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