MATILDE
ROSA ARAÚJO
(Lisboa,
Portugal,1921 – 2010)
Escritora
OUTRO
DIA
Sinto-me doente, estranha,
cansada. Apetecia-me não ser deste mundo, não ter que comer, beber, pensar.
Hoje começou um dia
cinzento, fim de Outono, prenúncio de Inverno, estes dias que dantes me alvoroçavam,
que me faziam espreitar por detrás das janelas o Inverno que nascia. Parece que
qualquer ser se desprendia então da terra, imponderável, imaculado.
Sinto as mãos em parapeitos
húmidos, um pouco ásperos e aquecidos. E depois há o silêncio como o sonho, e
em paz podia ver nascer o Inverno pela janela. E fico-me assim, capaz de
entender todos os mistérios.
Dilatam-se-me as narinas com o perfume que se foge
da terra. E há ao mesmo tempo o desprendimento do ser, o corpo como uma pluma
suavíssima, muito pequena mas alongada, até tocar o céu.
E sinto a harpa misteriosa. Um nascer de Inverno
assim. Umas gotas que caíram por acaso, não é chuva ainda, e escorregam no
vidro grosso da janela, a custo, soluçadas. Frio não está lá fora. É mais o que
se pressente. É o verdadeiro anúncio.
in “Árvore - Folhas de Poesia” – 1951
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarGostei de conhecer o blogger (segui uma ligação numa rede social)
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