AFONSO LOPES VIEIRA
(Leiria, Portugal, 1878 — Lisboa, 1946)
Poeta
da Renascença Portuguesa
«JORNAL
DE UM POETA»
S. Pedro de Muel, Julho, 1905
Quando
o Sol está já enterrado até aos peitos, voltam da horta a Maria Joaquina e o
seu burro. A esta hora, e na praia deserta, estas duas figuras são de uma
grande melancolia. Maria Joaquina acurva e tropeça, - sempre de negro, - desde que a
filha, a mais nova, a que podia ser neta, a do ultimo beijo! - morreu ali
afogada num desses estúpidos desastres em que o triunfo de morte é tão fácil,
que nos sugere que a morte, em vez de imagem solene, é qualquer coisa tão
familiar como o galo que dorme ao borralho, entre o serão da família. Mas o
relevo da pobre velha é o seu burro, lanzudíssimo e santo.
***
Tive
sempre por este estranho animal - o burro – uma simpatia extrema. Em criança
torturei-o, como os outros. Encanta-me a sua paciência para aturar os pobres (que são afinal, os que ninguém
atura) e o sustentam de fome e pancadas. Enternece-me a sua mansa adaptação na família
e, albergada no seu corpo maneiro, feito para ser útil, a sua alma serena, enobrecida
de vontade estóica e de tolerância budista.
Crêem-no estúpido, a ele,
muito mais inteligente, que o cavalo - esse tolo com memória. Acham-no feio, a ele,
cujos olhos são os mais doces da criação.
Mesmo os cavalos só atingem esta expressão, quando a dor
os despoja da sua vulgar elegância plástica, em que os felinos e as mulheres triunfam.
Esse trágico, admirável cavalo- mineiro de
Meunier - gótica imagem das coisas usadas, - é quase um burro.
***
Uma vez, num hall de hotel, não me lembro bem onde,
li num jornal um anúncio que iluminava a página em que vinha. Em volta dele os
charlatães grasnavam, acotovelando-se, os nomes bárbaros das mezinhas, ou os
títulos dos livros, ou as cotações das Bolsas. Era um burro que se vendia, um
burro familier avec enfants. Familier avec enfanls! È a angelização
do irracional.
***
Mas estas silhuetas melancólicas
que todas as tardes considero, recordam-me outro grupo, igualmente irmanado e
caduco. Relembro uma velhita, a Maria Rosa, que vivia de recovagens entre
Leiria e uma aldeia próxima. Tinha a carinha tão lavrada de rugas, que uma
lágrima que por ela escorregasse, pelas gelhas se canalizava, como a água nos
regos das hortas.
Essa montava o jumento, também
velhusco e triste; - os burros terão mocidade? É-me impossível evocar a velhita
sem que o seu burro não reveja. E tudo se me funde nesta imagem:- ao longo de
uma estrada um centauro de lentidão e paciência...
***
Ah!, os burros têm
mocidade, e nenhum animal doméstico tem uma meninice mais infantil que
estes babrés saltantes e ledosl Suas
cabeças são frisadas como as de San Jõesinhos de Renascença; seus olhos brilham
deslumbrados de voluptuosidade de viver e nos seus movimentos infantilmente
doidos adivinha-se a embriaguez dos músculos tenros que ensaiam as vibrações da
força. Depois quase sem transição, esta alegria pende, e fica a digna tristeza,
a gravidade modesta e, sobretudo a cisma,
que os homens chasqueiam, e eles guardarão em todas as cruas situações da nossa
vida, quer hajam de sofrer o bárbaro contacto dos caixeiros ruidosos, quer venham
à horta com as caducas mães que choram seus filhos.
***
Se Jesus montasse um
corcel quando entrou em Jerusalém na Páscoa, talvez o cristianismo não tivesse
conquistado os corações dos contemporâneos aflitos. Decerto, a imagem do fundador,
assim deformada, não inspiraria aos simples a confiança e a esperança...
Mas Jesus
montou a jumenta que os galileus lhe trouxeram e albardaram com suas próprias
vestes. E nunca Jesus me parece tão cristão como quando entra na cidade
sacerdotal e flamejante de padres da Lei, rodeado dos seus ingénuos burriqueiros,
seguido da esperta cria que a mãe ainda amamenta, e certamente antegozando já e
para além dos horizontes da terra, a beleza da morte heróica, que transforma os
homens em deuses e consagra a vitória das ideias.
in “A Farça” – 1910
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