quarta-feira, 15 de março de 2017

AFONSO LOPES VIEIRA - «Jornal de um poeta»



AFONSO LOPES VIEIRA
 (Leiria, Portugal, 1878 — Lisboa, 1946)
Poeta da Renascença Portuguesa

«JORNAL DE UM POETA»

S. Pedro de Muel, Julho, 1905

Quando o Sol está já enterrado até aos peitos, voltam da horta a Maria Joaquina e o seu burro. A esta hora, e na praia deserta, estas duas figuras são de uma grande melancolia. Maria Joaquina acurva e tropeça, - sempre de negro, - desde que a filha, a mais nova, a que podia ser neta, a do ultimo beijo! - morreu ali afogada num desses estúpidos desastres em que o triunfo de morte é tão fácil, que nos sugere que a morte, em vez de imagem solene, é qualquer coisa tão familiar como o galo que dorme ao borralho, entre o serão da família. Mas o relevo da pobre velha é o seu burro, lanzudíssimo e santo.

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Tive sempre por este estranho animal - o burro – uma simpatia extrema. Em criança torturei-o, como os outros. Encanta-me a sua paciência para aturar os pobres (que são afinal, os que ninguém atura) e o sustentam de fome e pancadas. Enternece-me a sua mansa adaptação na família e, albergada no seu corpo maneiro, feito para ser útil, a sua alma serena, enobrecida de vontade estóica e de tolerância budista.

Crêem-no estúpido, a ele, muito mais inteligente, que o cavalo - esse tolo com memória. Acham-no feio, a ele, cujos olhos são os mais doces da criação.
Mesmo os cavalos só atingem esta expressão, quando a dor os despoja da sua vulgar elegância plástica, em que os felinos e as mulheres triunfam. Esse trágico, admirável cavalo- mineiro de Meunier - gótica imagem das coisas usadas, - é quase um burro.


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Uma vez, num hall de hotel, não me lembro bem onde, li num jornal um anúncio que iluminava a página em que vinha. Em volta dele os charlatães grasnavam, acotovelando-se, os nomes bárbaros das mezinhas, ou os títulos dos livros, ou as cotações das Bolsas. Era um burro que se vendia, um burro familier avec enfants. Familier avec enfanls! È a angelização do irracional.


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Mas estas silhuetas melancólicas que todas as tardes considero, recordam-me outro grupo, igualmente irmanado e caduco. Relembro uma velhita, a Maria Rosa, que vivia de recovagens entre Leiria e uma aldeia próxima. Tinha a carinha tão lavrada de rugas, que uma lágrima que por ela escorregasse, pelas gelhas se canalizava, como a água nos regos das hortas.
Essa montava o jumento, também velhusco e triste; - os burros terão mocidade? É-me impossível evocar a velhita sem que o seu burro não reveja. E tudo se me funde nesta imagem:- ao longo de uma estrada um centauro de lentidão e paciência...

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Ah!, os burros têm mocidade, e nenhum animal doméstico tem uma meninice mais infantil que estes babrés saltantes e ledosl Suas cabeças são frisadas como as de San Jõesinhos de Renascença; seus olhos brilham deslumbrados de voluptuosidade de viver e nos seus movimentos infantilmente doidos adivinha-se a embriaguez dos músculos tenros que ensaiam as vibrações da força. Depois quase sem transição, esta alegria pende, e fica a digna tristeza, a gravidade modesta e, sobretudo a cisma, que os homens chasqueiam, e eles guardarão em todas as cruas situações da nossa vida, quer hajam de sofrer o bárbaro contacto dos caixeiros ruidosos, quer venham à horta com as caducas mães que choram seus filhos.

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Se Jesus montasse um corcel quando entrou em Jerusalém na Páscoa, talvez o cristianismo não tivesse conquistado os corações dos contemporâneos aflitos. Decerto, a imagem do fundador, assim deformada, não inspiraria aos simples a confiança e a esperança... 

Mas Jesus montou a jumenta que os galileus lhe trouxeram e albardaram com suas próprias vestes. E nunca Jesus me parece tão cristão como quando entra na cidade sacerdotal e flamejante de padres da Lei, rodeado dos seus ingénuos burriqueiros, seguido da esperta cria que a mãe ainda amamenta, e certamente antegozando já e para além dos horizontes da terra, a beleza da morte heróica, que transforma os homens em deuses e consagra a vitória das ideias.



in “A Farça” – 1910


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