quinta-feira, 2 de março de 2017

EDUARDO LOURENÇO – Esfinge ou a Poesia




EDUARDO LOURENÇO
(São Pedro de Rio Seco, Almeida, Portugal, 1923),

Professor e filósofo português.


ESFINGE OU A POESIA
(…)
A cada hora o mundo é o que fazemos dele. A história o que fizermos dela. E os valores. E os encontros. Impossível aceitar como Édipo que tudo está feito só porque descobrimos a fórmula que permite que tudo se faça.

Tudo se está fazendo. Se cruzamos os braços, as coisas e as ideias voltam ao caos, e os fantasmas da necessidade e da morte adquirem novo alento pela nossa desistência. Era indecente que um só tivesse carregado a cruz uma só vez. O cristão sabe que deve levá-la todos os dias. A cada hora basta a sua pena, mas cada hora precisa duma dor nossa para se sentir acordada. 

A Esfinge não é um enigma resolvido nem a resolver nos séculos futuros. A Poesia não é uma árvore morta nem a fazer florir nas colinas de amanhã. E a resolução que damos à história, aos encontros, às promessas de cada vez que consentimos descer das palavras à dificuldade dos actos. Ou subimos dos actos à corola mágica das palavras com que os arrancamos à certa desolação do tempo e da morte.

Como na hora em que concebemos a Esfinge para nos tocarmos melhor, continuamos sendo aqueles que procuram danadamente uma autêntica face de homem, uma existência em busca duma essência. Ou uma essência descontente de si mesma buscando-se entre possibilidades múltiplas de existir. Por isso sabemos hoje que não teremos uma face diferente daquilo que fizermos. Mas fazer de novo é continuar a criação e criar é ser poeta. O que significa finalmente não ter outro rosto senão o que a Poesia nos modelar.




in “Árvore: folhas de poesia” – 1951




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