MATILDE ROSA ARAÚJO
(Lisboa,
Portugal,1921 – 2010)
Escritora
OUTRO
DIA
Nunca me hei-de esquecer
do casal, hoje, do carro eléctrico. Ela muito pintada, a pintura sem poder
esconder a palidez que grita e uma franja que não lhe esconde os olhos e uma
pluma negra caída que não lhe esconde a cara. Toda vestida e enchapelada de
cinzento claro. Como uma pomba. Uma pomba com uma pena negra em vez de bico. E
uma borracha de água quente debaixo do casaco. Ia a falar do coração com o marido,
também muito pálido, que levava uma radiografia presa nos dedos engelhados.
Ela parecia que andava a
fingir de viva com a pluma negra e ele que era a sombra daquele fingimento. A
borracha de água quente para o coração não arrefecer. Um dos mistérios misteriosos da vida ia ali. A
pomba cinzenta a que apetece fechar as asas.
in “Árvore - Folhas de Poesia” – 1951
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