quarta-feira, 1 de março de 2017

MATILDE ROSA ARAÚJO – Páginas de diário (III)




MATILDE ROSA ARAÚJO
(Lisboa, Portugal,1921 – 2010)

Escritora


OUTRO DIA

Nunca me hei-de esquecer do casal, hoje, do carro eléctrico. Ela muito pintada, a pintura sem poder esconder a palidez que grita e uma franja que não lhe esconde os olhos e uma pluma negra caída que não lhe esconde a cara. Toda vestida e enchapelada de cinzento claro. Como uma pomba. Uma pomba com uma pena negra em vez de bico. E uma borracha de água quente debaixo do casaco. Ia a falar do coração com o marido, também muito pálido, que levava uma radiografia presa nos dedos engelhados.

Ela parecia que andava a fingir de viva com a pluma negra e ele que era a sombra daquele fingimento. A borracha de água quente para o coração não arrefecer. Um dos mistérios misteriosos da vida ia ali. A pomba cinzenta a que apetece fechar as asas.




in “Árvore - Folhas de Poesia” – 1951


Sem comentários:

Enviar um comentário

MALMEQUER

MALMEQUER Português, ó malmequer Em que terra foste semeado? Português, ó malmequer Cada vez andas mais desfolhado Ma...