Isabel da Nóbrega (Lisboa, Portugal, 1925).
Escritora, jornalista e tradutora escreveu mais de três mil crónicas para a imprensa e a rádio.
Criou o “Prémio Cidade de Lisboa” para romance e fundou o “Instituto de Apoio à Criança”.
Palavras
de Isabel da Nóbrega:
Excerto do livro “Viver com os
Outros”:
“Aquecer a
água para o Henrique tomar de manhã. Tanto copo, senhores!
Mas correu tudo bem.
Ainda no outro dia era o calor do quarto do hospital. Que bom poder festejar o
teu regresso a casa, ao trabalho, à vida. Aqueles longos, intermináveis, dias e
noites, o teu rosto suado, emaciado, interrogativo. Hoje rodeado da “equipe de
choque”.
É bom receber à nossa mesa, dar um jantar cozinhado por nós com
alegria – oh, a alegria… Em dada altura parecias ter desistido de lutar,
parecias resvalar devagarinho para o outro lado.
Eu gritava-te como em sonhos,
sem ouvir a voz, que não me deixasses, que não me deixasses. Agora foram-nos de
novo entregues as nossas noites, os nossos dias. A água ao lume. Se me
faltasses, tu que és o meu esteio, que seria de mim? E a outra angústia, que
nunca sei descrever-te, ou que nunca sabes ouvir, porque brincas com ela.
Onde
estou, que sou eu, para onde vou? Três planos de realização, o plano pessoal, o
plano social mundano e o plano social-social. Eu sinto-me humanamente
realizada, mas sem uma vocação, que me defina nem uma profissão que me
justifique, qual a minha contribuição no plano social? Nem todos podem intervir na vida do seu tempo, mas todos
têm obrigação de contribuir.
Ainda não ferve. Que seria hoje a Mariana sem o
seu diploma. Está apta para assumir responsabilidades, uma carreira. Mas,
coitada, quantos mal-entendidos. Mal-entendido. Malentendu. Camus. O Camus explica na peça que para evitar
mal-entendidos é preciso não usar artifício. “Se o homem quiser que o reconheçam, diga simplesmente quem é”. –
Isso era bom, era. Mas nunca ninguém nos reconhece. Mesmo quando dizemos quem
somos. Tu próprio, Henrique…desconfiaste, descreste de um amor que se te
oferecia em bloco…
Ferveu. Thermos. Copo. Frasco. Colher de chá. Tudo na
bandejinha. Permanente esta interrogação. Não me agarro a certezas. Estou
sempre pronta a rever as minhas ideias. Mas não me integro em nenhum meio. Não
lhes pertenço. Porquê? A sensação, por vezes, de me desintegrar…Oh, Henrique…”
- Pronto. A bandejinha. Afasta o candeeiro.
- Lá fora, apagaste a luz, amor?
- Apaguei.
- E fechaste o gás, meu amor?
- Sim, fechei.
-Mas há uma porta que range… Tinha de ser…
- Eu vou fechá-la, amor, eu vou já ver. – Era a
porta da varanda. Abri-a de par em par. A fresca noite entrou. É noite. É
Junho, amor, e estamos vivos. E não estamos sozinhos. Oh, esta alegria de não
estarmos sós”.
Isabel da Nóbrega, in “Viver com os Outros”
Imagem: pintura de Elizabeth V.
Blackadder (Reino Unido, 1931).
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