Carlos Drummond de Andrade (Itabira, Brasil, 1902 – Rio de Janeiro, Brasil, 1987).
Foi o primeiro grande poeta posterior aos movimentos que inauguraram o modernismo brasileiro.
Palavras de Carlos Drummond de Andrade:
“Há duas épocas na vida, infância
e velhice, em que a felicidade está numa caixa de bombons.”
A Máquina do Mundo
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montese de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivavae só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuronem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxadano rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavama quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimosos mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inéditoda natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussãoatestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciênciasublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animaise chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todosmonumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresceno caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessaque entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissema de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquelehabitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerravasemelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não foraapetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa ofertaque se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,seguia vagaroso, de mãos pensas.
Carlos Drummond de
Andrade, in “Claro Enigma”.
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