sábado, 1 de abril de 2017

MATILDE ROSA ARAÚJO – Páginas de diário (IV)




MATILDE ROSA ARAÚJO
(Lisboa, Portugal,1921 – 2010)

Escritora


OUTRO DIA

Uma garotinha suja, como um pingo de água dum beiral, pôs-se ao pé de mim:

- Minha senhora leve estes garfinhos para a sua menina...

(Era um talherzinho de plástico cor de rosa num cartão vermelho).

- Eu não tenho menina nenhuma... (e ela não podia entender o abandono das minhas palavras).
- Então leve este balão para o seu menino!
- Eu não tenho menino...
- Não tem?
- Não. Porquê? Achas que tenho?
- Acho. A senhora podia ser minha mãe...

Podia ser minha mãe! Um balão amarelo na mão e, na outra, um cartãozinho vermelho com um talher cor-de-rosa.
Coisas com que não brinca. E eu ainda me lembro, de quando era pequena, do encanto que tinham para mim uns talherzinhos assim, de metal, presos por um cordel.

- Crianças industriadas… houve quem dissesse. Será esta.

Serão muitas. Não acredito, que sei de cor os olhos das crianças.
Mas que seja. Que sejam muitas. A culpa é nossa que as deixamos assim, à procura de uma maternidade que lhes devemos inteira. E o pior de tudo é que grande parte das crianças com pai e mãe precisam dela.

- Podia ser minha mãe!

Há poemas que nascem assim como este, trágicos e imaculados. E tão curtos que ninguém dá por eles.



in “Árvore - Folhas de Poesia” – 1951




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