terça-feira, 18 de abril de 2017

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - Serradura




MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Lisboa, Portugal, 1890 – Paris, França, 1916)

Um dos grandes expoentes do Modernismo em Portugal


SERRADURA

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a môna, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma,
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo.

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa;

Folhetim da «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas,
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual...

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia...

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta...

Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
- Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer,

O que era fácil - partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo,
De barrete de papel,

A gritar Viva a Alemanha!...
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade.

Vou deixá-la - decidido -
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais «raffiné».




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