MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Lisboa, Portugal, 1890 – Paris, França,
1916)
Um dos grandes expoentes do Modernismo em
Portugal
SERRADURA
A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida
fartou-se.
E ei-la, a môna, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma
estofada.
Pois é assim: a minha Alma,
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só
pelúcias.
Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao
Oiro antigo.
Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não
passa;
Folhetim da «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas,
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia
igual...
O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia...
Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta
aberta...
Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
- Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de
endoidecer,
O que era fácil - partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo,
De barrete de papel,
A gritar Viva a Alemanha!...
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de
lealdade.
Vou deixá-la - decidido -
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais «raffiné».
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