SOBRE
OS PARTIDARISMOS EM POESIA
O
Parnaso foi outrora silencioso e calmo. Os poetas eram serenos criadores de
ideal, intérpretes de vozes misteriosas que estavam fora e além do tumulto das
paixões comuns, alheias na essência e na expressão aos rudes debates da
história. Os românticos introduziram na poesia - e por vezes com muito boa
poesia - as inquietações individuais, as ansiedades mundanas, a trivialidade
expressa em harmonias; e a poesia declinou insensivelmente para o plano das
adesões e dos repúdios, perdendo a inviolabilidade das coisas sagradas e
associando-se com ardor combativo ao destino dos homens, como outro
instrumento, entre muitos, para forçar esse destino. Com gosto ou sem ele, terá
de reconhecer-se que a poesia verdadeiramente moderna é a que traduz, por
formas mais ou menos directas, este sentido inevitavelmente partidário da
arte da palavra na sua acepção mais pura.
Um velho patriarca frequentemente
esquecido, Tolstoi, afirmou sem reticências que o penhor de toda a vocação artística
verdadeira é o amor da humanidade e não o amor da arte; que só ardentemente
trespassado de amor pelos homens se pode atingir em arte o plano da criação
superior; e outro profeta que nada tinha de patriarca dos tempos novos, André
Gide, não hesitou em proclamar que a Beleza tem um papel activo a desempenhar
no mundo, que a acção tem de ser bela, que a arte tem de incorporar-se no mundo
e viver com ele o destino que o espera.
Não
há obstinação que resista a estas realidades da poesia de hoje - e a própria
poesia que arvora como missão intransigente o anti partidarismo se apresenta irremediavelmente
partidária. A única defesa possível, sem ser hipócrita ou fictícia, dos puros
valores poéticos é a que se situa neste plano da realidade espiritual contemporânea
acolhendo como genuína poesia, sem estreitezas de bando, a que exprimir com
sinceridade e beleza a verdade dos homens de hoje - e que não podem deixar de
ser de hoje.
Batalham os partidos poéticos em torno de fórmulas, como se os
dividisse a ambição de um mundo muito acanhado; mas o seu mau partidarismo,
ainda quando o repudiam, é o de negarem a possibilidade da autêntica poesia sob
esta ou aquela fórmula adversa, como se através de todas não se exprimisse,
melhor ou pior, a responsabilidade humana do poeta vivendo irredutivelmente no
seu tempo. A poesia é agora muito mais um acto do que uma inspiração.
Só
pode desejar-se que o acto poético seja inspirado, que traduza com sinceridade ardente
as verdades íntimas ou as inquietações colectivas – ambas igualmente sociais
porque comunicam a verdade do homem inevitavelmente social; que seja bela,
quando adere ao tumulto ou quando se insurge contra ele; que condense em beleza
ordenada e em significação acessível os ecos inúmeros que a realidade de todos repercute
na alma de cada um.
Tudo isso estará acima das fórmulas e das negações de
fórmulas - e será sempre vã demonstração de que a poesia não é poética ou é
mais poética por estar dentro ou fora de quaisquer fórmulas. Se a poesia
possuir o dom do contágio emotivo, quer traduza um estado de alma recôndito,
quer uma realidade exterior trivial mas profundamente impressionada e
impressionável, estará sempre na linha da poesia de todos os tempos e também na
linha da poesia de hoje. Toda a verdadeira poesia é fiel à humanidade e por
isso partidária.
O debate dos
partidarismos, quaisquer que eles sejam, é que é estranho à poesia e ignora-a
ainda quando julga afirmá-la. Em nome do realismo ou sem ele o genuíno poeta
será sempre um fecundo fabricante de ideal, despertando no mais profundo das
almas individuais o rumor dos sonhos que transportam os homens à aspiração de
outro destino; e numa época em que a aspiração de forçar o destino se comunica temerariamente
a camadas cada vez mais numerosas e mais veementes de seres humanos, a poesia
criadora de ideal será tanto mais poética quanto mais profundamente traduzir o ímpeto
interior de cada homem na marcha de todos os homens.
ÁLVARO SALEMA (Viana do
Castelo, Portugal, 1914 - 1991), crítico literário e jornalista.
in “Árvore” – 1951
Imagem: pintura de FRANCESCO HAYEZ
(Veneza, Itália, 1791- Milão, 1882).
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