quinta-feira, 6 de abril de 2017

SOBRE OS PARTIDARISMOS EM POESIA




SOBRE OS PARTIDARISMOS EM POESIA

O Parnaso foi outrora silencioso e calmo. Os poetas eram serenos criadores de ideal, intérpretes de vozes misteriosas que estavam fora e além do tumulto das paixões comuns, alheias na essência e na expressão aos rudes debates da história. Os românticos introduziram na poesia - e por vezes com muito boa poesia - as inquietações individuais, as ansiedades mundanas, a trivialidade expressa em harmonias; e a poesia declinou insensivelmente para o plano das adesões e dos repúdios, perdendo a inviolabilidade das coisas sagradas e associando-se com ardor combativo ao destino dos homens, como outro instrumento, entre muitos, para forçar esse destino. Com gosto ou sem ele, terá de reconhecer-se que a poesia verdadeiramente moderna é a que traduz, por formas mais ou menos directas, este sentido inevitavelmente partidário da arte da palavra na sua acepção mais pura. 

Um velho patriarca frequentemente esquecido, Tolstoi, afirmou sem reticências que o penhor de toda a vocação artística verdadeira é o amor da humanidade e não o amor da arte; que só ardentemente trespassado de amor pelos homens se pode atingir em arte o plano da criação superior; e outro profeta que nada tinha de patriarca dos tempos novos, André Gide, não hesitou em proclamar que a Beleza tem um papel activo a desempenhar no mundo, que a acção tem de ser bela, que a arte tem de incorporar-se no mundo e viver com ele o destino que o espera.

Não há obstinação que resista a estas realidades da poesia de hoje - e a própria poesia que arvora como missão intransigente o anti partidarismo se apresenta irremediavelmente partidária. A única defesa possível, sem ser hipócrita ou fictícia, dos puros valores poéticos é a que se situa neste plano da realidade espiritual contemporânea acolhendo como genuína poesia, sem estreitezas de bando, a que exprimir com sinceridade e beleza a verdade dos homens de hoje - e que não podem deixar de ser de hoje. 

Batalham os partidos poéticos em torno de fórmulas, como se os dividisse a ambição de um mundo muito acanhado; mas o seu mau partidarismo, ainda quando o repudiam, é o de negarem a possibilidade da autêntica poesia sob esta ou aquela fórmula adversa, como se através de todas não se exprimisse, melhor ou pior, a responsabilidade humana do poeta vivendo irredutivelmente no seu tempo. A poesia é agora muito mais um acto do que uma inspiração.

Só pode desejar-se que o acto poético seja inspirado, que traduza com sinceridade ardente as verdades íntimas ou as inquietações colectivas – ambas igualmente sociais porque comunicam a verdade do homem inevitavelmente social; que seja bela, quando adere ao tumulto ou quando se insurge contra ele; que condense em beleza ordenada e em significação acessível os ecos inúmeros que a realidade de todos repercute na alma de cada um. 

Tudo isso estará acima das fórmulas e das negações de fórmulas - e será sempre vã demonstração de que a poesia não é poética ou é mais poética por estar dentro ou fora de quaisquer fórmulas. Se a poesia possuir o dom do contágio emotivo, quer traduza um estado de alma recôndito, quer uma realidade exterior trivial mas profundamente impressionada e impressionável, estará sempre na linha da poesia de todos os tempos e também na linha da poesia de hoje. Toda a verdadeira poesia é fiel à humanidade e por isso partidária.

O debate dos partidarismos, quaisquer que eles sejam, é que é estranho à poesia e ignora-a ainda quando julga afirmá-la. Em nome do realismo ou sem ele o genuíno poeta será sempre um fecundo fabricante de ideal, despertando no mais profundo das almas individuais o rumor dos sonhos que transportam os homens à aspiração de outro destino; e numa época em que a aspiração de forçar o destino se comunica temerariamente a camadas cada vez mais numerosas e mais veementes de seres humanos, a poesia criadora de ideal será tanto mais poética quanto mais profundamente traduzir o ímpeto interior de cada homem na marcha de todos os homens.


ÁLVARO SALEMA (Viana do Castelo, Portugal, 1914 - 1991), crítico literário  e jornalista. 

in “Árvore” – 1951

Imagem: pintura de FRANCESCO HAYEZ (Veneza, Itália, 1791- Milão, 1882).




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