ALMADA
NEGREIROS
(Trindade,
São Tomé e Príncipe, 1893 — Lisboa, 1970)
Artista plástico, poeta, dramaturgo, romancista
TERCEIRA MANHÃ
Quando
cheguei aqui
o
que havia estava no fim
e
o que estava por vir
andava
disperso pelo sonho de alguns.
Mas
a maioria
vivia
o
seu dia a dia
e
todos contentes
por
serem todos assim.
Eles
não davam pelo fim
quanto
mais pelo que já assomava mais além
- isto que já começava nos sonhos de alguém.
***
E
foi terrível isto de viver o que há-de vir
entre
os que apenas usam o que ainda há.
Era
como se tivessem apostado todos
em
não me deixarem chegar
ao
que eu andava a sonhar.
Enquanto
pude fiz-me louco medido,
destes
que andam à solta
sem
ser preciso encerrá-los.
Encontrei
exactamente a medida de escapar à medida deles
e
sem estragar a medida de ninguém.
Sem
eu o saber fiz todo um método
toda
uma arte de atravessar a multidão.
Fiz-me
invisível no simulacro de mim.
Mas
guardava-lhes a surpresa
que
tinha guardada em mim.
E foi aqui que eu me enganei:
A
minha surpresa só serve para mim e para o futuro
e
não cabe nestes dias de hoje
que
já foram os sonhados por outros.
A
minha surpresa ainda é só para mim
ainda
é só o meu sonho que já nasceu para mim e para o futuro
e
que tem apenas côr,
côr
que ainda não tem nome,
nome
que ainda não tem feitio,
feitio
que ainda não tem perfil,
perfil
que ainda não se desvenda,
é
apenas inconfundível,
e
apesar de ainda não estar registado
apenas o tempo sabe que já aqui chegou.
E
aqui me tendes chegado
ao
único a que eu quis chegar:
saber
o sítio da estrela
que
ilumina o meu lugar.
Oh
estrela do meu sonhar!
Sem
a tua luz própria
sem
o teu distante cintilar
tão
fixo lá do teu lugar
eu
não podia chegar aqui
o
sítio do meu mistério.
Aqui
me tendes alfim chegado
diante
do meu próprio mistério.
Agora
tudo é concorde e imenso
tudo
se liga e conclui.
Nada
do que eu faço é ainda provisório
como
na minha meia vida de ontem,
a
metade de espera da nova metade que vale por duas!
E
assim tinha de ser:
eu jamais saberia nada
senão
através das minhas próprias dimensões,
senão
à luz da minha estrela,
à
luz da aurora do meu mistério.
Que
o pobre do mundo clama
para que desvendemos cada qual os nossos próprios
mistérios!
Imagem: Almada Negreiros – auto-retrato
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