JOSÉ TERRA
(Prozelo,
Portugal, 1828 – Paris, França, 2014)
Poeta,
filólogo, historiador, tradutor e professor catedrático
***
DECISÃO
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
ÁLVARO DE CAMPOS
Depois de depois de amanhã irei com o Álvaro de Campos para Glasgow.
A
Escócia é uns pais estranho, mas não aquela de que falam os jornais e os
professores. Não a da geografia, não essa, que diabo! vocês não podem entender
porque só têm olhos perto das mãos.
Vocês só conhecem Glasgow
como um porto de mar. Um grande porto. Enfim, com certo movimento, bastante
nevoeiro e bastante gente que fala o inglês e lê ao serão o Shakespeare.
Mas não é dessa Glasgow que eu trato. A nossa Escócia não tem longitude ou latitude, não tem gente, ou, se tem, é gente que não chega a ser, isto é, gente que tem qualquer coisa de extravagante, uma perna única, por exemplo, uma cabeça sem crânio, gente que é doida.
O Álvaro de Campos gosta muito de gente que está fora do centro de gravidade. Diz ele que isto de entrar a horas no emprego, de um tipo pôr gravata e ter de pedir licença ao porteiro, de tirar atestados de bom comportamento, - diz ele que tudo isto é muito chato, muito estúpido. E tem razão. Gosto de tipos assim. Que são do avesso. Que dormem de dia e têm a noite para viver. São formidáveis!
Conhecem o que vós jamais conhecereis, funcionários pontuais e certos, burocratas estúpidos, carneiros de gravata, vós que não entendeis por que é que o Álvaro quer que o Tejo corra ao contrário.
É
por isso mesmo que eu vou com o Álvaro de Campos para Glasgow. Glasgow é a
capital da Escócia. A geografia não diz, mas bolas! eu sou contra a geografia.
Lá é que o Álvaro poderá dormir tranquilamente, livre do Esteves, livre da moça que o espreita da janela. Lá é que talvez o Álvaro se safe da sua neurastenia.
Para
longe, para a Escócia, timoneiro de bruma.
Que
chatice! Portugal já tem oitocentos anos e
está pegado sempre aqui à beira-mar. O Álvaro de Campos - repito - chateia-se
com tudo isto.
Diz ele que de duas uma: ou desata à porrada, ou então vai para Glasgow depois de depois de amanhã…
Lisboa, 12/10/52
in “Árvore – Folhas de Poesia” – 1952
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