POSSUÍDOS PELO DEMÓNIO
A
invenção do demónio. Se estamos possuídos pelo demónio, não pode ser só por um,
porque então viveríamos, pelo menos na terra, em paz, como se fosse com Deus,
em união, sem contradições, sem reflexão, sempre seguros do homem atrás de nós.
O seu rosto não nos amedrontaria, porque, como seres diabólicos, teríamos,
mesmo que um pouco sensíveis à vista, a esperteza suficiente de preferir
sacrificar uma mão para lhe tapar a cara com ela.
Se estivéssemos possuídos
apenas por um demónio, um que tivesse uma visão tranquila, calma, de toda a
nossa natureza, e liberdade para dispor de nós em qualquer momento, esse
demónio teria também poder suficiente para nos manter durante o âmbito de uma
vida humana muito acima do espírito de Deus em nós, e mesmo para nos balançar
de um lado para o outro para que assim não víssemos nenhum sinal dele e consequentemente
não fôssemos perturbados por esse lado.
Só uma multidão de demónios pode ser
responsável pelas nossas desgraças terrenas.
Porque não se matam eles uns aos
outros até só ficar um, ou porque não ficam subordinados a um grande demónio?
Qualquer das duas hipóteses estaria de acordo com o princípio diabólico de nos
enganar tanto quanto possível.
Faltando unidade, para que serve a atenção escrupulosa que todos os demónios nos prestam? Deve importar muito mais a um demónio que nos caia um cabelo do que a Deus, uma vez que o demónio perde na realidade esse cabelo e Deus não.
Faltando unidade, para que serve a atenção escrupulosa que todos os demónios nos prestam? Deve importar muito mais a um demónio que nos caia um cabelo do que a Deus, uma vez que o demónio perde na realidade esse cabelo e Deus não.
Mas não conseguimos atingir um estado de
bem-estar enquanto houver dentro de nós tantos demónios.
FRANZ
KAFKA (Praga, actual República Tcheca, 1883
– Áustria, 1924), escritor, in “Diário” (Citador).
Imagem:
manuscrito de Praga, primeira pintura feita sobre o demónio no período medieval.
Interessante. Ótima reflexão.
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