terça-feira, 17 de novembro de 2015

SELMA LAGERLÖF – A Marcha Nupcial

 
 
 
 
 

Selma Lagerlöf (Suécia, 1858 – 1940)

Foi escritora, poetisa e professora.

Publicou, durante muitos anos, pequenos contos, em jornais e revistas.

Ficou célebre no seu país a partir da publicação do romance A Saga de Gösta Berling.

Algumas das suas obras mais expressivas foram adaptadas para o cinema.

Foi a primeira mulher a receber o “Prémio Nobel de Literatura”, em 1909, e a ser membro da “Academia Sueca”, em 1914.

O seu mais fabuloso sucesso editorial foi A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson, publicado em 1906.

A sua obra caracteriza-se por um profundo sentimento de humanidade e de amor à terra que a viu nascer.

 
Palavras de Selma Lagerlöf:

Ninguém pode livrar os homens da dor, mas será bendito aquele que fizer renascer neles a coragem para a suportar.”
 
 
A Marcha Nupcial
 
Há muitos anos, ia celebrar-se um rico casamento na comuna de Svarstjo, na Vermlândia. A bênção nupcial seria na igreja, e a festa duraria três dias inteiros, e, enquanto durasse a festa, devia dançar-se desde o anoitecer até de manhãzinha.
 
E, pois que se devia dançar tanto, era muito importante achar um músico consumado, e a Nils Elofson, o rico camponês que casava a filha, atormentava mais este problema do que o resto dos preparativos. Quanto ao músico que habitava em Svarstjo, não o queria ele por preço algum. Chamava-se João Oster, e o nosso camponês sabia bem que tinha grande nomeada, mas era tão pobre, que às vezes se apresentava nas festas descalço e de colete rasgado. Não é um maltrapilho assim que a gente gosta de ver à frente de um cortejo nupcial.
 
Decidiu-se enfim a mandar perguntar a certo Martim, chamado o Tocador, de Josseherad, cantão vizinho, se estava disposto a vir tocar no casamento de Svarstjo.  Sem um instante de hesitação, respondeu Martim, o Tocador, que nunca tocaria em Svarstjo, enquanto houvesse naquela comuna o melhor músico de toda a Vermlândia. Visto que tinham aquele, não havia necessidade de mandar chamar outro.
 
Recebendo esta resposta, esperou Nils Elofson alguns dias para reflectir, depois mandou perguntar a Olle de Saby, que morava na comuna de Stora Kil, se podia vir tocar no casamento de sua filha.
 
Mas Olle de Saby deu a mesma resposta que Martim. Mandou dizer a Nils Elofson que, enquanto houvesse em Svarstjo um músico como João Oster, ele lá não iria tocar.
 
Nils Elofson não achava graça à pretensão dos músicos de lhe imporem quem ele não queria. Parecia-lhe até que era agora um ponto de honra achar outro músico que não fosse João Oster.
 
Alguns dias depois de receber a resposta de Olle de Saby, enviou o criado a Lars Larsson, o violinista de Engsgardet, na comuna de Ulerud.
 
Lars Larsson era homem abastado, proprietário de uma próspera granja; era prudente e reflectido, não uma cabeça esquentada como os outros músicos.
 
Mas esse, como os outros, pensou logo em João Oster, perguntando por que não se tinham dirigido a ele para o que queriam. Por malícia, respondeu o criado de Nils que, como João Oster morava em Svarstjo, havia ocasião de ouvi-lo todos os dias, e, visto que Nils Slofson promovia uma festa extraordinária, desejava oferecer aos seus convidados alguma coisa melhor, mais rara.
 
— Duvido que ele ache melhor.
 
— Sem dúvida, vai dar a mesma resposta que Martim o Tocador, e Olle de Saby — disse o criado, contando-lhe o acolhimento que aqueles tinham feito ao convite do seu senhor.
 
Atento, ouviu Lars Larsson a narração do criado. Guardou silêncio um momento, reflectindo, e deu resposta afirmativa.
 
— Dize a teu amo que agradeço o convite e que irei à hora marcada.
 
No domingo seguinte, lá foi Lars Larsson à igreja de Svarstjo. Viram-no chegar à ladeira que conduz à igreja, justamente quando começava a formar-se o cortejo nupcial para se pôr a caminho.
 
Viera no seu próprio carrinho, puxado por um cavalo de preço; vestia um belo trajo negro e tirou o instrumento de uma esplêndida caixa. Recebeu-o Nils Elofson com todos os respeitos devidos à sua categoria: aquele, sim, era um músico de quem a gente se podia orgulhar.
 
Pouco depois da chegada de Lars Larsson, viram aproximar-se João Oster, com o violino debaixo do braço. Foi direito ao cortejo que cercava a noiva, como se tivesse sido convidado para tocar na festa.
 
Vinha com o seu velho colete de burel cinzento, que vestia há longos anos, mas, como se tratava de casamento tão rico, a mulher fizera alguns consertos, pondo nos cotovelos grandes remendos de pano verde. Era um belo homem, de alta estatura, e faria grande figura à frente do cortejo nupcial, se não estivesse tão miseravelmente vestido, e se a luta incessante contra a miséria lhe não houvesse marcado o rosto de rugas.
 
Vendo chegar João Oster, pareceu Lars Larsson contrariado.
 
— Convidou-o também? — perguntou a meia voz a Nils Elofson. — Não são demais com efeito, dois músicos para tão magnífico casamento.
 
— Mas não o convidei — protestou Nils Elofson. — Não compreendo por que veio. Espera um pouco, que lhe farei saber que nada tem a fazer aqui.
 
— Foi então algum trocista que o convidou. Mas, se quer o meu parecer, façamos de conta que de nada desconfiamos e vá dar-lhe as boas-vindas. Tenho ouvido dizer que ele é arrebatado de génio, e não podemos ter a certeza de que não vá fazer escândalo, se lhe disser que não foi convidado.
 
Aceitou Nils sem hesitação este conselho. Seria inoportuno procurar aborrecimentos no momento em que o cortejo se formava na praça da igreja. Aproximou-se, pois, de João Oster e cumprimentou-o.
 
Feito isto, colocaram-se ambos os músicos à frente. Atrás deles, o par, sob o pálio, seguido dos pajens e donzelas de honor, dois a dois; vinham depois os pais dos noivos, e os diversos membros de ambas as famílias, de modo que o acompanhamento tinha na verdade um aspecto imponente.
 
Quando tudo estava pronto, um rapaz, dirigindo-se aos músicos, pediu-lhes que iniciassem a marcha nupcial.
 
Fizeram ambos os músicos simultaneamente o mesmo gesto de apoiar o violino ao queixo. Nisto pararam ambos, rígidos, à espera, porque, em Svarstjo, um velho costume exigia que fosse o músico mais hábil a iniciar a marcha nupcial.
 
Olhou o rapaz para Lars Larsson como a indicar que este começasse, mas Lars Larsson olhou para João Oster, dizendo:
 
— É João Oster quem deve começar!
 
Não pensava, porém, João Oster que o outro, vestido tão ricamente como um senhor, lhe pudesse ser inferior, a ele que, envergando um velho colete de burel, vinha de uma pobre cabana onde não havia mais do que trabalho e miséria.
 
— Oh, mas de modo nenhum — disse ele, confuso. — Oh! Não, de modo nenhum!
 
Viu que o noivo tocava no cotovelo de Lars Larsson, dizendo:
 
— Lars Larsson deve começar!
 
Ouvindo estas palavras, João Oster retirou o violino do queixo e deu um passo para o lado.
 
Lars Larsson não se moveu; ficou no seu lugar, parecendo tranquilo e contente de si. Contudo, também não levantou o arco.
 
— É João Oster quem deve começar — repetiu, acentuando as palavras, como homem habituado a fazer o que quer.
 
Houve não pouca agitação no cortejo, por causa da demora. Veio o pai do noivo pedir a Lars Larsson que começasse. À porta da igreja apareceu o porteiro, fazendo-lhe sinal para que se apressassem; o pastor já estava diante do altar. Era pouco delicado fazê-lo esperar.
 
— Não têm mais do que pedir a João Oster que comece — respondeu Lars Larsson. — Nós, músicos, sabemos que é o mais hábil de todos.
 
— Pode ser que assim seja — replicou o camponês — mas nós, camponeses, achamos que és tu, Lars Larsson, o mais hábil.
 
Cercavam-nos todos os convidados.
 
— Mas começai — diziam — o pastor está à espera. Vamos servir de risota a toda a gente.
 
Lars Larsson, porém, permaneceu ali, tenaz e desdenhoso como nunca.
 
— Não compreendo por que a gente daqui se opõe com tanto ardor a que o seu próprio músico tenha o primeiro lugar — disse ele.
 
Mas Nils Elofson enfurecera-se perante a obstinação de todos em quererem impor-lhe João Oster. Aproximou-se de Lars Larsson e disse-lhe ao ouvido:
 
— Compreendo que foste tu quem chamou João Oster, para o honrar diante de todos. Mas agora trata de começar, senão vou enxotar da praça este esfarrapado, que só levará daqui vergonha e confusão.
 
Sem mostrar cólera, olhou-o Lars Larsson nos olhos e fez com a cabeça um sinal afirmativo.
 
— Sim, tem razão, é preciso acabar com isto.
 
Fez sinal a João Oster para retomar o seu lugar à frente. Depois, adiantou-se alguns passos para que todos o pudessem ver. E, com um gesto rápido, lançou longe o arco, tirou a faca do bolso e cortou de um golpe as quatro cordas, que se partiram, produzindo um som agudo.
 
— Ninguém dirá que me considero acima de João Oster! — gritou ele.
 
Ora, é o caso que há três anos ruminava João Oster uma ária que sentia palpitar em si, mas que era incapaz de fazer sair das cordas do violino, porque, lá em casa, estava constantemente curvado sob o pesado fardo de cuidados pequeninos e miseráveis, e nunca lhe sucedera nada que o pudesse elevar acima da tarefa quotidiana.
 
Quando ouviu rebentarem as cordas do violino de Lars Larsson, atirou para trás a cabeça e aspirou violentamente o ar nos pulmões. Tinha os traços do rosto tensos, como se escutasse alguma coisa que lhe vinha de muito, muito longe, e de repente, pôs-se a tocar.
 
Porque a ária que procurara em vão durante três anos, lhe aparece de improviso com maravilhosa limpidez, e, fazendo ressoar as notas claras, pôs-se a caminhar altivamente para a igreja.
 
E jamais a gente do cortejo ouvira ária tão triunfal. Arrastou-os a todos com tão irresistível ímpeto que o próprio Nils Elofson não se pôde manter quieto. E estavam todos tão contentes, não só de João Oster, mas também de Lars Larsson, que o acompanhamento inteiro tinha os olhos rasos de lágrimas ao entrar na igreja.
 
 
Selma Lagerlöf
Imagem: pintura de Rui Carruço (Lisboa, Portugal, 1976)
 
 

 
 

 

 

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