Fernando Pessoa
(Lisboa, Portugal,
1888 – 1935).
É uma das figuras mais singulares e complexas da
literatura portuguesa.
Palavras de
Fernando Pessoa:
“O homem não sabe mais que os outros animais;
sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não.”
É o que a Gente
leva desta Vida
A persistência instintiva da vida através da aparência
da inteligência é para mim uma das contemplações mais íntimas e mais
constantes. O disfarce irreal da consciência serve somente para me destacar
aquela inconsciência que não disfarça.
Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma
exterioridade de si mesmo que têm os animais. Toda a vida não vive, mas vegeta
em maior grau e com mais complexidade. Guia-se por normas que não sabe que
existem, nem que por elas se guia, e as suas ideias, os seus sentimentos, os
seus actos, são todos inconscientes - não porque neles falte a consciência, mas
porque neles não há duas consciências.
Vislumbres de
ter a ilusão - tanto, e não mais, tem o maior dos homens.
Sigo, num
pensamento de divagação, a história vulgar das vidas vulgares. Vejo como em
tudo são servos do temperamento subconsciente, das circunstâncias externas
alheias, dos impulsos de convívio e desconvívio que nele, por ele e com ele se
chocam como pouca coisa.
Quantas vezes
os tenho ouvido dizer a mesma frase que simboliza todo o absurdo, todo o nada,
toda a insciência falada das suas vidas. É aquela frase que usam de qualquer
prazer material: «é o que a gente leva desta vida»... Leva onde? leva para
onde? leva para quê?
Seria triste despertá-los da sombra com uma pergunta como
esta... Fala assim um materialista, porque todo o homem que fala assim é, ainda
que subconscientemente, materialista. O que é que ele pensa levar da vida, e de
que maneira? Para onde leva as costeletas de porco e o vinho tinto e a rapariga
casual? Para que céu em que não crê? Para que terra para onde não leva senão a
podridão que toda a sua vida foi de latente?
Não conheço frase mais trágica nem
mais plenamente reveladora da humanidade humana. Assim diriam as plantas se
soubessem conhecer que gozam do sol.
Assim diriam dos seus prazeres sonâmbulos
os bichos inferiores ao homem na expressão de si mesmos. E, quem sabe, eu que
falo, se, ao escrever estas palavras numa vaga impressão de que poderão durar,
não acho também que a memória de as ter escrito é o que eu «levo desta vida».
E, como o inútil cadáver do vulgar à terra comum, baixa ao esquecimento comum o
cadáver igualmente inútil da minha prosa feita a atender. As costeletas de
porco, o vinho, a rapariga do outro? Para que troço eu deles?
Irmãos na comum insciência, modos diferentes do mesmo
sangue, formas diversas da mesma herança - qual de nós poderá renegar o outro?
Renega-se a mulher mas não a mãe, não o pai, não o irmão.
Fernando Pessoa, in “O Livro do Desassossego”
Imagem: pintura de Gustavo Fernandes (Lisboa, Portugal, 1964).
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