António
Gedeão (Lisboa, Portugal,
1906 – 1997).
Foi professor, pedagogo e autor de manuais escolares, historiador da ciência e da educação, divulgador científico e poeta.
Foi professor, pedagogo e autor de manuais escolares, historiador da ciência e da educação, divulgador científico e poeta.
Palavras
de António Gedeão:
“Ser
professor tem de ser uma paixão - pode ser uma paixão fria mas tem de ser uma
paixão. Uma dedicação."
Poema
da Eterna Presença
Estou,
nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva,
de olhos postos no céu, e reparo, com alegria,
que as dimensões do infinito não me perturbam.
(O infinito! Essa incomensurável distância de meio metro
que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!)
de olhos postos no céu, e reparo, com alegria,
que as dimensões do infinito não me perturbam.
(O infinito! Essa incomensurável distância de meio metro
que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!)
O que me perturba é que o todo possa caber na parte,
que o tridimensional caiba no dimensional, e não o esgote.
O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim,
de mim, pobre de mim, que sou parte do todo.
E em mim continuaria a caber se me cortassem braços e pernas porque eu não sou braço nem sou perna.
Se
eu tivesse a memória das pedras
que logo entram em queda assim que se largam no espaço
sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair;
se eu tivesse a memória da luz que, mal começa,
na sua origem, logo se propaga,
sem que nenhuma se esquecesse de propagar;
os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra, os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos que engoliram continentes,
a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das geleiras que galgaram sobre a Terra.
que logo entram em queda assim que se largam no espaço
sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair;
se eu tivesse a memória da luz que, mal começa,
na sua origem, logo se propaga,
sem que nenhuma se esquecesse de propagar;
os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra, os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos que engoliram continentes,
a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das geleiras que galgaram sobre a Terra.
Mas
não esqueci tudo.
Guardei a memória da treva, do medo espavorido
do homem da caverna que me fazia gritar quando era menino
e me apagavam a luz; guardei a memória da fome;
da fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez estender os lábios sôfregos para mamar
quando cheguei ao mundo; guardei a memória do amor,
dessa segunda fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez desejar a mulher do próximo e do distante;
guardei a memória do infinito, daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos, em que assisti,
disperso, fragmentado, pulverizado, à formação do Universo.
Guardei a memória da treva, do medo espavorido
do homem da caverna que me fazia gritar quando era menino
e me apagavam a luz; guardei a memória da fome;
da fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez estender os lábios sôfregos para mamar
quando cheguei ao mundo; guardei a memória do amor,
dessa segunda fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez desejar a mulher do próximo e do distante;
guardei a memória do infinito, daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos, em que assisti,
disperso, fragmentado, pulverizado, à formação do Universo.
Tudo
se passou defronte de partes de mim.
E aqui estou eu feito carne para o demonstrar,
porque os átomos da minha carne
não foram fabricados de propósito para mim.
Já cá estavam.
Estão.
E estarão.
E aqui estou eu feito carne para o demonstrar,
porque os átomos da minha carne
não foram fabricados de propósito para mim.
Já cá estavam.
Estão.
E estarão.
António Gedeão, in "Poemas Póstumos"
Imagem: pintura de Jean Delville (Bélgica, 1867 - 1953).
Sem comentários:
Enviar um comentário