Jaime Salazar Sampaio
(Lisboa, Portugal, 1925 – 2010).
Excertos da autobiografia, Vivência e Convivência, que o poeta e
dramaturgo escreveu para o JL em 2008:
Vivência e Convivência
É verdade que nasci no dia 5 de Maio de 1925, na
cidade de Lisboa.
Mas o que é nascer? Entrar neste mundo com uma carta de prego? Um
cheque em branco ou, pelo contrário? Se é que há um contrário para estas
coisas...
Não sei responder...
Ao que parece, até chegar às
encruzilhadas da adolescência, fui um miúdo sossegadito e muito comunicativo.
Raramente sujava o meu bibe branco e falava pelos cotovelos.
Depois, zás! Despi o bibe e
fechei-me em copas. (…)
Para mim a adolescência foi assim
uma espécie de...segundo nascimento. Ou, pelo menos, um enorme salto;
deslumbrante e terrível. (…)
Se aquilo era o mundo dos adultos,
eu estava metido num grande sarilho! (…)
Certo dia, um dos meus primos,
onze anos mais velho do que eu, revelou-me a existência de três poetas, para
mim inteiramente desconhecidos: Fernando Pessoa, António Botto e Carlos
Drummond de Andrade.
Foi uma festa. Um terramoto.
Um deslumbramento.
Se é certo que antes disso eu já
começara a escrevinhar, laboriosa e secretamente, umas versalhadas pouco
convincentes (cheguei mesmo a fabricar sonetos, contando as sílabas pelos dedos
da mão) ao descobrir que a Poesia podia ser "uma outra coisa", senti
que nem tudo estaria perdido e talvez eu pudesse, sem sair do mundo das palavras,
encontrar um território onde coubessem todas as minhas contradições: estar
sozinho e com todos os homens, aceitando e não aceitando o absurdo e o
maravilhoso do quotidiano. (…)
Eu queria escrever e estava
disposto a pagar um preço para o conseguir. Porém, sendo eu quem sou e vivendo
neste país, sabia não ter condições para me tornar um escritor profissional,
sendo pois obrigado a "inventar" uma actividade complementar que me
garantisse a sobrevivência. (…)
Entretanto, no plano literário,
alguma coisa me acontecera: em 1945 publicara no Bloco, uma antologia
organizada pelo Luiz Pacheco e muito apreciada pela Polícia de Vigilância e
Defesa do Estado, alguns poemas e uma embrionária peça de teatro.
... Teatro?... Mas o que é que se
estava a passar comigo? Então eu agora passara de uma escrita mais ou menos
poética, para uma outra, mais ou menos destinada aos palcos?... Era preciso
alguma desfaçatez, pois eu de teatros nada sabia. E só episodicamente fora, até
àquela data, um espectador.
Bom. Até onde eu me lembro, eu
deslizara da poesia para a dramaturgia sem premeditação e com bastante
naturalidade. Talvez por saber (sem saber que sabia) que, para mim, estas duas
formas de escrita eram duas cartas do mesmo baralho. E até talvez... do mesmo
naipe.
Simplificando, pode dizer-se que a
poesia era um encontro entre mim, o lápis e uma folha de papel. Quanto à
escrita teatral, oferecia-me outras hipóteses de convivência. Bem mais ricas,
variadas e estimulantes.
Logo de início, via-me obrigado a
discutir com as minhas personagens, as quais, embora muitas vezes fossem
parecidas comigo (e talvez por isso mesmo), costumavam dar-me bastante luta. (…)
Aos vinte anos, dei por mim a
escrever uma peça. E pronto... o teatro invadiu a minha vida.(…)
"Tal como eu vejo as coisas,
o Teatro é Amor, Mistério e Rebelião. (…)
"A memória", disse uma
vez a Magdalena, naquele seu monólogo com o mesmo nome, "a memória é como
todas as coisas... A memória das coisas. E dos homens... As pessoas enganam-se
com as recordações. Desarrumam o passado, é tudo quanto fazem... Pegam num dia
como os outros, voltam-no do avesso e..."
Ora sendo assim (e eu nunca
"desautorizo" as minhas personagens!), desisto do balanço,
substituindo-o por algumas palavras do Jaime Augusto, uma outra
personagem (para não dizer: o protagonista) de muitas das peças do meu teatro:
"Estou em paz comigo. E com os meus fantasmas... É possível que eu não
seja um admirável homem de teatro. Mas sem o Teatro, teria sido seguramente uma
outra pessoa.
O que o Teatro me deu, ficou dado:
uma Vivência e uma Convivência.
... Quanto às peças, elas são o
rescaldo do fogo dos dias".
Parábola
Um homem era pobre e
vendeu um braço.
Continua sem dinheiro
e agora é maneta.
Jaime Salazar Sampaio
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