Carta de Alexandre Herculano a Oliveira
Martins
Il.mo Snr.
V. S.ª teve a bondade de me remeter o
seu opúsculo acerca de Teófilo Braga e do Romanceiro e Cancioneiro Português,
acompanhando a dádiva de uma carta recheada de expressões tão exageradamente benévolas
que não sei se as agradeça, se me limite a esconder a mesma carta para que
ninguém a veja.
Sempre tive grandes dúvidas sobre a
doutrina da superioridade das inteligências; isto é, da diferença de
inteligência a inteligência, quando estas são completas. No que acreditava, na
época em que pensava nessas cousas, era na superioridade das vontades. O querer
é que é raro; e tenho a consciência de que fui um homem que quis nas
cousas literárias. Desde que perdi o querer, caí na vulgaridade. Hoje não passo
de um homem vulgar.
Aqui tem V. S.ª a verdade da minha
apoteose.
Quando profundos desgostos me forçaram
a descrer das letras, e ainda mais do país, as tendências da actual mocidade
estudiosa apenas despontavam no horizonte, se despontavam. V. S.ª faz-me, ou o
favor, ou a justiça, no seu opúsculo, de me supor homem de análise. Não há-de,
pois, de admirar-se que lhe diga que me parecem perigosas, para não dizer outra
cousa, essas tendências.
A generalização, a síntese, são, em
absoluto, cousas excelentes: são a ciência na sua forma definitiva e aplicável.
Mas, para generalizar e sintetizar, é necessário haver que. Ora, a história, na
significação mais ampla da palavra, ainda não possui elementos suficientes para
a generalização.
Desde a paleontologia e a etnografia, até à história das
sociedades modernas, há muitos factos adquiridos indubitável e indisputadamente
para a ciência; mas há muitos mais ignorados, incompletamente conhecidos, ou
disputados; e isto não só na história política e na social, mas também na do
desenvolvimento intelectual do género humano, na das letras e da ciência.
Que síntese séria é possível assim?
Enquanto a análise não tiver subministrado uma extensa série de monografias
definitivas, as sínteses que andam por aí correndo não passam de romances pouco
divertidos, quando não são piores do que isso: uma geringonça absurda.
No tempo em que eu andava peregrinando
por esse mundo literário, antes de me acolher ao mundo tranquilo de santa
rudeza, conversei um pouco com Vico e Herder, com Vico e Herder como a Itália e
a Alemanha os geraram, e não como os aleijaram e embaiucaram os cabeleireiros
franceses (todo o francês, com raras excepções, tem um pedacinho de
cabeleireiro). Sempre me pareceu que tinham nascido muito antes do seu tempo. Deus
ter-lhes-á decerto perdoado o mal que fizeram. Sem o quererem, nem pensarem,
deram origem a uma cousa em história que eu só sei comparar ao gongorismo da
poesia e da prosa literária do século XVII.
Desculpe V. S.ª esta franqueza de um
homem do campo. Tenho-a, porque o seu opúsculo revela um escritor, e, posto que
hoje eu não passe de um profano, far-me-ia pena se o visse perdido por esse
desvios das simbólicas, das estéticas, das sintéticas, das dogmáticas, das
heróicas, das harmónicas, etc..
Teófilo Braga é uma inteligência
completa e uma grande vocação literária, mas uma fraca vontade: gosta de
fazer ruído; deseja adquirir reputação; não possui, porém, o querer robusto
que vai até o sacrifício, que vai até o martírio, e que é preciso para se
tornar um homem verdadeiramente superior. Achou a porta do abstruso sintético e
simbólico engrinaldada de maravalhas francesas: meteu-se por ela; e, em
resultado, aí temos, não direi a Visão, as Tempestades e a Ondina,
porque não quero que V. S.ª fique mal comigo, mas direi a História da Poesia
Popular e os Forais que V. S.ª mesmo trata desapiedadamente.
Nestas matérias, peço a V. S.ª que se
volte um pouco para a análise. Há tanto que fazer por esta parte! Relendo o seu
folheto daqui a anos, há-de conhecer que o conselho era sincero e amigável.
Dir-me-á porque não o dou a Teófilo Braga? Porque não o aceita. Aquele, ou já
se não cura, ou há-de curar-se a si mesmo. É o que, sem lho dizer, eu do
coração desejo. Disponha V. S.ª da inutilidade deste aldeão que é, de V. S.ª
V.or e C.
in, Oliveira Martins, Alexandre Herculano.
Imagem:
busto de Alexandre Herculano. Escultura em terracota do escultor José Joaquim Teixeira Lopes (S. Mamede
de Ribatua, Alijó, Portugal, 1837 –
Vila Nova de Gaia, Portugal, 1918).
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