quarta-feira, 16 de novembro de 2016

ANTÓNIO BOTTO - À memória de FERNANDO PESSOA




Poema de Cinza
À memória de Fernando Pessoa


Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão
– Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida – esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo…
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
– Autênticos patifes bem-falantes…
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver
– Sem estímulo, sem fé, sem convicção…

Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar
– Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!





Nota: Este poema foi escrito na ocasião do falecimento de Fernando Pessoa.

in "Canções de António Botto"

Imagem: Fernando Pessoa (azulejos no Martinho da Arcada, Terreiro do Paço, Lisboa, Portugal)

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