É
IMPOSSÍVEL QUE O TEMPO ACTUAL NÃO SEJA O AMANHECER DOUTRA ERA
É impossível que o tempo
actual não seja o amanhecer doutra era, onde os homens signifiquem apenas um
instinto às ordens da primeira solicitação. Tudo quanto era coerência, dignidade,
hombridade, respeito humano, foi-se.
Os dois ou três casos pessoais que conheço
do século passado, levam-me a concluir que era uma gente naturalmente cheia de
limitações, mas digna, direita, capaz de repetir no fim da vida a palavra com
que se comprometera no início dela.
Além disso heróica nas suas dores,
sofrendo-as ao mesmo tempo com a tristeza do animal e a grandeza da pessoa.
Agora é esta ferocidade que se vê, esta coragem que não dá para deixar abrir um
panarício ou parir um filho sem anestesia, esta tartufice, que a gente chega a
perguntar que diferença haverá entre uma humanidade que é daqui, dali, de
acolá, conforme a brisa, e uma colónia de bichos que sentem a humidade ou o
cheiro do alimento de certo lado, e não têm mais nenhuma hesitação nem mais
nenhum entrave.
MIGUEL TORGA, in “Diário”
Imagem:pintura de Nil Catalano (Brasil)
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