António Ramos Rosa (Faro,
Portugal, 1924 – Lisboa, 2013).
Foi poeta, tradutor e desenhador.
VIAGEM
através
duma nebulosa
Noite
rã
oblíqua
ó
toda olhos à flor da névoa
o
trilo move-se perde-se repete-se pisca como a estrelinha
o
hálito da lua
orienta-me
numa nebulosa
de constelações tranquilas
Que
aéreo e estático silêncio
harmonia
de pálpebras e pupilas
a
redondez das estrelas foi feita pelas minhas mãos navegadoras
a
poalha cintilante e fluída
dos
céus
corre
no meu sangue
ondas
e barcas contradançam
substituem-se umas às outras
Os
grandes animais silenciosos da terra
Sonham
com um pássaro de barro
A
memória reencontra o seu palácio de homens
A torre emerge do menino
Além
mais para além
que
calma de navios
sobre
um porto sem nome sobre um cais
qualquer
transporto
por contágio o sonha da rapariga
à janela do mundo
O adolescente que fui
encontra a sua noiva
que
sortilégio de mãos e tranquila voz antiga
de
inexplorados sonhos
que
confiança interplanetária
me
leva para além dos contactos visíveis
chego ao limite onde a aurora ainda dorme
Os
rios torceram-me todas as hesitações
as
montanhas reacenderam toda a minha coragem
sobre
ventres de grávidas fêmeas silenciosas
retomei
o gosto de distribuir meus sonhos
nova
moeda de futuros seres
os
lisos cavalos da bruma
lançam-me
a rosa do seu bafo escuro
é bem o cheiro da madrugada
Sobre
todos os mortos de que me nutro em segredo
desenha-se
a rapariga da revolta do sol
a
tradição de seus braços
é
uma carícia de futuro
presente
sangrando em cada poro
17 milhões de mortos comprovam a grávida linha
ascensional
Todos
os jovens mortos
Correm
no fogo candente das tuas veias consteladas
ó
eterna rapariga
o
rumor que faz a amizade
através
dos países submersos
o
sussurro claro germinando da descoberta incessante
eis o ritmo do teu coração
Dia
a dia o teu grávido ventre se estende planície
dia
a dia os homens te forjam na consciência renovando-se
dormes
agora
a
tua cabeleira de horizontes
o
fulvo ondear do teu corpo de bandeira
acena-nos
um novo passo em cada espera forçada
as
sombras do martírio as mil e uma moscas do carnaval pútrido
em
vão tentam sugar o cadáver que resiste
o
cadáver que resiste
não
chegam a formar a sombra que oculta o esplendor
que ressalta em cada face humilde
O
arsenal do estupro lento
as
orquestras dos caos
os
benfeitores dos monstros
em
vão tentam amortecer o dinamismo da paisagem
as
máquinas delicadas dos turistas
acenam
bom senso
em vão
…
… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …
A
redondez das estrelas
é
um apelo às minhas mãos
as minhas mãos navegadoras correm em arrepios teu corpo
em formação
Deito-me
no horizonte
tudo se faz mais claro
Imagem: desenho de António Ramos Rosa
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