quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

MATILDE ROSA ARAÚJO – Páginas de diário (II)





MATILDE ROSA ARAÚJO
(Lisboa, Portugal,1921 – 2010)

Escritora


OUTRO DIA


Sinto-me doente, estranha, cansada. Apetecia-me não ser deste mundo, não ter que comer, beber, pensar.

Hoje começou um dia cinzento, fim de Outono, prenúncio de Inverno, estes dias que dantes me alvoroçavam, que me faziam espreitar por detrás das janelas o Inverno que nascia. Parece que qualquer ser se desprendia então da terra, imponderável, imaculado.

Sinto as mãos em parapeitos húmidos, um pouco ásperos e aquecidos. E depois há o silêncio como o sonho, e em paz podia ver nascer o Inverno pela janela. E fico-me assim, capaz de entender todos os mistérios. 

Dilatam-se-me as narinas com o perfume que se foge da terra. E há ao mesmo tempo o desprendimento do ser, o corpo como uma pluma suavíssima, muito pequena mas alongada, até tocar o céu.

E sinto a harpa misteriosa. Um nascer de Inverno assim. Umas gotas que caíram por acaso, não é chuva ainda, e escorregam no vidro grosso da janela, a custo, soluçadas. Frio não está lá fora. É mais o que se pressente. É o verdadeiro anúncio.




in “Árvore - Folhas de Poesia” – 1951



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