UMA
FEIÇÃO DA LISBOA DE 1809
No tempo de Bocage, ao
principiar o século XIX, a boémia baixa da capital explodia em lojas de café
com tablilhas ornamentadas de frascaria de licores; em bilhares franceses e
italianos onde o «truque» tinha espectadores de copo para os victores aos
carambolistas; na casa dos «rotos guriteiros» que na frase de Tolentino, ungiam
os dedos com cuspo milagroso, na passagem das cartas, e ainda nos sobrados
pecaminosos em que «hetaíras» de fileira se deixavam ferir das setas de um
Cupido avariado.
Alta-noite – a alta noite
de 1809, era às dez horas – bandos de vagabundagem amorosa assaltavam pela
cidade esses prazos-dados a enlaces momentâneos com pastoras, arcadicamente
duvidosa, ou iam até Benfica desnalgar-se numa casa onde se dançava o fandango.
Era aí que o cómico Frederico, mulato de melena crespa, a quem Bocage chamava
Cómico sem sabor, porco
matreiro,
pedra filosofal de espécie
nova
que
muda as parvoíces em dinheiro,
dedilhava na bandurra o último fandango, como um dos atractores da assistência, de parceria com o Fuzárias (o dr. José Carneiro, que se assinava à latina, no delírio das academias, Josephus Aries, donde se lhe derivou o alcunho), diabo-alma, calvo e bexigoso, pimponante de fidalgo e de estúrdio.
Os outros eram o Caldas Barbosa,
um mulatão tocador de lundus e o orangotango Joaquim Manuel, exímio em bandurrim
e viola, chamado pelos poetas o •Orfeu de Carapinha”. Aí se ajuntava a malta
toda e daí vinha, em cambulhada, para o sobrado da rua da Palma, onde outra
mulata, a Maria Gertrudes, que fugira da Casa Pia e sendo presa tornou a fugir, arrastando
consigo mais doze companheiras, dava reuniões de bródio oratório, ou para a
casa da Maria Inês, ao Chafariz do Rato, onde havia uma verdadeira colónia de
Vénus africanas.
Outra casa de fandangos
era a da Francisca Maria, na calçada de Santana. Bailava-se lá todas as noites,
como em casa da Teresa de Évora, à Lapa, onde os embarcadiços estrangeiros se
deleitavam embatuques de viola.
De Évora tinha vindo também a Mariana, que
abrira estalagem ao pé de uma "sala de pagodes" no Arco do Bandeira,
junto à rua dos Retroseiros. Os envergonhados aproveitavam-se da sombra do arco
de S. Bento para subir, à capucha, ao sobrado da Guiomar e nunca em sua vida
iriam à Francisca Ilhôa, à Laureana ou à Joana Baptista que morava aos Paulistas,
cuja fama, em matéria de escândalos, era notória, com consequências de Limoeiro
ou deHospital.
Das casas de maior voga, em
estúrdia pacata, eram a da Maria Teresa, na rua da Procissão, perita em
absorver tostões do bolsilho mais resguardado; a da Ana Maria Rosa, na travessa
do Frederico, que pompeava de «bela mulher» e tratava a todos por meu riquinho; e a da Maria Leocádia, na
rua de Santo António (?), cujo marido lhe era prestante auxiliar e que vivia
entre dezenas de cães e de gatos.
Quem quisesse obter específicos salutares para
maleitas, nenhuma outra encontrava como a Maria Rosa, no adro do Salvador; e
quem gostasse de desordem, berraria, discussão azeda, era ir defrontar-se com a
Ana de Pina, da Travessa da Quintinha, pior do que a «Rendeira das Bravas», da
Ribeira, capaz de desancar dois homens possantes e de os ameaçar, em pugnas de
língua e de soco, com a navalha que nunca largava. Todavia, para lhe cair em
graça e fazê-la mansa, havia um remédio: era elogiar-lhe a valentia. De leoa
passava logo a borrega.
A chusma dos boémios e a
soldadesca de França era o que tinha em Lisboa para divertir-se.
Eram estes os seus «Maxim's»
e os seus «Monumentais», tão diferentes, em tudo, das luxuosas e civilizadas
casas de prazer de 1929, como são diferentes o Intendente Pina Manique e o
General Novion do sr. Coronel Ferreira do Amaral.
in, “Feira da Ladra” – Revista mensal ilustrada - 1929
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