terça-feira, 13 de junho de 2017

UMA FEIÇÃO DA LISBOA DE 1809

 
 
 
UMA FEIÇÃO DA LISBOA DE 1809

 No tempo de Bocage, ao principiar o século XIX, a boémia baixa da capital explodia em lojas de café com tablilhas ornamentadas de frascaria de licores; em bilhares franceses e italianos onde o «truque» tinha espectadores de copo para os victores aos carambolistas; na casa dos «rotos guriteiros» que na frase de Tolentino, ungiam os dedos com cuspo milagroso, na passagem das cartas, e ainda nos sobrados pecaminosos em que «hetaíras» de fileira se deixavam ferir das setas de um Cupido avariado.

Alta-noite – a alta noite de 1809, era às dez horas – bandos de vagabundagem amorosa assaltavam pela cidade esses prazos-dados a enlaces momentâneos com pastoras, arcadicamente duvidosa, ou iam até Benfica desnalgar-se numa casa onde se dançava o fandango. Era aí que o cómico Frederico, mulato de melena crespa, a quem Bocage chamava

Cómico sem sabor, porco matreiro,
pedra filosofal de espécie nova
que muda as parvoíces em dinheiro,


dedilhava na bandurra o último fandango, como um dos atractores da assistência, de parceria com o Fuzárias (o dr. José Carneiro, que se assinava à latina, no delírio das academias, Josephus Aries, donde se lhe derivou o alcunho), diabo-alma, calvo e bexigoso, pimponante de fidalgo e de estúrdio.
Os outros eram o Caldas Barbosa, um mulatão tocador de lundus e o orangotango Joaquim Manuel, exímio em bandurrim e viola, chamado pelos poetas o •Orfeu de Carapinha”. Aí se ajuntava a malta toda e daí vinha, em cambulhada, para o sobrado da rua da Palma, onde outra mulata, a Maria Gertrudes, que fugira da Casa Pia e sendo presa tornou a fugir, arrastando consigo mais doze companheiras, dava reuniões de bródio oratório, ou para a casa da Maria Inês, ao Chafariz do Rato, onde havia uma verdadeira colónia de Vénus africanas.

Outra casa de fandangos era a da Francisca Maria, na calçada de Santana. Bailava-se lá todas as noites, como em casa da Teresa de Évora, à Lapa, onde os embarcadiços estrangeiros se deleitavam embatuques de viola.
De Évora tinha vindo também a Mariana, que abrira estalagem ao pé de uma "sala de pagodes" no Arco do Bandeira, junto à rua dos Retroseiros. Os envergonhados aproveitavam-se da sombra do arco de S. Bento para subir, à capucha, ao sobrado da Guiomar e nunca em sua vida iriam à Francisca Ilhôa, à Laureana ou à Joana Baptista que morava aos Paulistas, cuja fama, em matéria de escândalos, era notória, com consequências de Limoeiro ou deHospital.

Das casas de maior voga, em estúrdia pacata, eram a da Maria Teresa, na rua da Procissão, perita em absorver tostões do bolsilho mais resguardado; a da Ana Maria Rosa, na travessa do Frederico, que pompeava de «bela mulher» e tratava a todos por meu riquinho; e a da Maria Leocádia, na rua de Santo António (?), cujo marido lhe era prestante auxiliar e que vivia entre dezenas de cães e de gatos.
Quem quisesse obter específicos salutares para maleitas, nenhuma outra encontrava como a Maria Rosa, no adro do Salvador; e quem gostasse de desordem, berraria, discussão azeda, era ir defrontar-se com a Ana de Pina, da Travessa da Quintinha, pior do que a «Rendeira das Bravas», da Ribeira, capaz de desancar dois homens possantes e de os ameaçar, em pugnas de língua e de soco, com a navalha que nunca largava. Todavia, para lhe cair em graça e fazê-la mansa, havia um remédio: era elogiar-lhe a valentia. De leoa passava logo a borrega.
A chusma dos boémios e a soldadesca de França era o que tinha em Lisboa para divertir-se.

Eram estes os seus «Maxim's» e os seus «Monumentais», tão diferentes, em tudo, das luxuosas e civilizadas casas de prazer de 1929, como são diferentes o Intendente Pina Manique e o General Novion do sr. Coronel Ferreira do Amaral.

 

GUSTAVO DE MATOS SEQUEIRA (Lisboa, Portugal, 1880 – 1962), jornalista, político, arquitecto e escritor  
in, “Feira da Ladra” – Revista mensal ilustrada - 1929

 

 

 

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