ALMADA
NEGREIROS
(Trindade,
São Tomé e Príncipe, 1893 — Lisboa, 1970)
Artista plástico, poeta, dramaturgo, romancista
QUARTA MANHÃ
Um
ângulo de terra diante de mim
com
o vértice no meu olhar.
Ora
junta em montes
ora
rasa nos vales
assim
segue a terra até ao mar,
e
antes ainda de lá chegar
a
própria terra já parece o mar.
A
luz do dia mostra a natureza
e
os meus olhos vêem.
A
minha imaginação dá respiração à natureza
e
de cor completa-a com o resto do redondo
o
que além do ângulo à terra faltava.
Não
só a paisagem os meus olhos viam
mas
a terra inteira no seu verdadeiro tamanho,
não
como a possam ver os olhos
mas
como a imaginação
tem
modos de medição.
E
mais do que a sua própria grandeza
eu
via também,
via
com os olhos e a imaginação
todas
as idades da terra
em
toda a sua duração.
Tudo
começava lá, ao princípio,
num
ponto:
um
simples ponto sem dimensão,
e
do qual partiam depois todas as linhas
todos
os ângulos, cones e sectores
de
uma esfera infinita
da
qual a terra era uma pequena reprodução
e
eu uma pequena reprodução da terra.
Desde o ponto inicial até mim
a
linha era única
e
não pertence hoje
senão
a mim.
No
ponto inicial nasceram todos os destinos, até os destinos sem dono.
Jamais
perdi o tempo com o mistério dos outros
ainda
mesmo que as nossas vidas se cruzem.
Não
são as nossas vidas actuais que se comunicam
já
sei
mas
sim os nossos mistérios que dialogam.
E
eu acabo de chegar apenas ao limiar do meu mistério.
Eu
tive d'inventar-me um génio discretíssimo
para
escapar através dos séculos à mecânica das actualidades.
Para
chegar até aos meus próprios pensamentos,
aos
meus pensamentos só meus,
eu
tive muitas vezes de dar voltas ignóbeis!
Mas
até que cheguei aqui
a
isto que eu buscava,
e
que é o principiar em mim.
Desde
o ponto inicial
já
tudo começou para mim
e
passados séculos e séculos
eu hoje vou exactamente em mim.
Imagem: Almada Negreiros – auto-retrato
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