sexta-feira, 11 de maio de 2018

LUÍS DE STTAU MONTEIRO – Redacção da Guidinha: "Buff que estou farta"



LUÍS DE STTAU MONTEIRO
(Lisboa, Portugal, 1926 - 1993)
Dramaturgo, encenador, romancista, jornalista

***

BUFF QUE ESTOU FARTA

Buff que estou mesmo a cair de cansaço logo de manhã minha mãe mandou-me para a bicha do leite e quando cheguei a casa e disse que tinha lá estado mas que não tinha conseguido leite mandou-me para a bicha do bacalhau ia a dar-me uma estalada mas o meu primo Manuel do Mercedes não deixou e disse que era verdade porque ele de manhã tinha estado na bicha da gasolina e também não tinha conseguido gasolina estávamos nesta conversa e o meu pai chegou a casa todo baforido a dizer que um bicha se tinha metido com ele na rua enfim isto é um país de bichas e mais bichas e mais bichas qualquer dia começamos a vender as nossas bichas para os jardins zoológicos e ficamos ricos mas não é só em bichas que estamos com excessos não senhor agora andamos com boatos por todos os cantos o meu pai assim que chegou a casa disse que era preciso comprar arroz porque ia subir de preço e o meu primo disse logo que o óleo e o azeite também iam subir e vai a minha mãe vestiu o casaco para ir à rua comprar estas coisas e pediu dinheiro ao meu pai e ele rapou da carteira e deu-lhe vinte escudos para as compras ora toda a gente sabe que agora com vinte escudos não se compra nada de maneira que a minha mãe teve de despir o casaco outra vez a choramingar muito triste por não poder encher a despensa mas lá que ela é esperta isso é no meio da choraminguice meteu os vinte escudos no bolso como quem não quer a coisa e se o meu pai não a tivesse visto ainda a esta hora lá estavam mas ele é que não é parvo nenhum de maneira que daí a dez minutos foi à cozinha perguntar pelos vinte escudos e ela teve que lhes dizer adeus coitada cá em casa há uma contabilidade bestial e ninguém vai em golpadas é o vais! quem anda contente com a falta de gasolina é o meu pai esse anda a dizer que vão ser obrigados a não deixar as pessoas passear ao domingo e que o resultado disso vai ser as pessoas não poderem ir ao futebol e eles não terem outro remédio senão porem os jogos na televisão o que é bom para quem não tem carro nem pilim que é o caso dele o meu primo Manuel do Mercedes é que anda lixado porque gastou o pilim no Mercedes para armar aos cágados e se não o deixarem passear ao domingo fica sem nada na alma sim porque ele em casa não tem lá grandes Cóias não senhor senão uns moveizitos comprados na Rua dos Fanqueiros uma coisa que há chamada «bronzes de arte» que é uns cavalos a pastar e um senhor vestido de guerreiro com uma lança na mão em cima dum cavalo que está a pisar uma cobra e mais nada e mesmo isso só na sala porque lá para dentro não há nada metade das pessoas que andam de Mercedes gastam tudo nele e vivem pior que eu sei lá já tenho pensado que se a Mercedes sair com um modelo que tenha casa de banho há uma data de pataratas que nunca mais vão a casa e que acabam a vida a passear de um lado para o outro de Mercedes para fingir não se sabe o quê enfim cada um arma com o que pode e como que tem cá na Graça há uma que arma a dizer que tem todo o bacalhau que quer porque conhece um senhor que conhece um outro que é primo dum outro enfim uma bicha de conhecimentos que nunca mais acaba para comprar de vez em quando um rabito de bacalhau! Cá na Graça arma a dizer que têm o que falta às outras é uma maneira bestialmente estúpida de armar mas pessoas são assim mesmo e não há nada a fazer senão aguentar adeus vou para a bicha do sabão que anda para aí a gente a dizer que vai subir.  


in “A Mosca” - 1973





2 comentários:

  1. Nesta data, as " Redacções da Guidinha " eram procuradas e censuradas.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Boa noite, Ivone Teles. Obrigado pela sua mensagem. Naquele tempo a censura - pouco inteligente - não evitava que escritores como o Sttau Monteiro escrevesse com o humor e a ironia que "eles" não entendiam. Cumprimentos.

      Eliminar

MALMEQUER

MALMEQUER Português, ó malmequer Em que terra foste semeado? Português, ó malmequer Cada vez andas mais desfolhado Ma...