PEREGRINAÇÃO
Quando
vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a
salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos
os males passados, quanta tenha de Lhe dar graças por este só bem presente,
pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca
escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha
intenção escrevê-la) para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da
vida que passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e
dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária,
Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele oriental arquipélago dos
confins da Ásia e a que os escritores chins, siameses, guéus, léquios, chamam
em suas geografias, a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito
particular e muito amplamente.
Daqui por um lado tomem os homens motivo de não
desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque
não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana
ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao Senhor
omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos os
meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males
que por mim passaram, e delas forças e o ânimo para os poder passar e escapar
deles com vida.
in
“Peregrinação” (excerto)
FERNÃO MENDES PINTO (Montemor-o-Velho, Portugal, 1510/14 - Almada, 1583), escritor, aventureiro, explorador
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