MACHADO DE ASSIS
(Rio de Janeiro, Brasil, 1839 -
1908)
Escritor, poeta
***
PANCRÁCIO
BONS DIAS!
Eu pertenço a uma família
de profetas après coup, post facto, depois do gato morto, ou
como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for,
que toda a história desta lei de 13 de Maio estava por mim prevista, tanto que
na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que
tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada;
entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que os meus
amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco
pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no
intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a
minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que,
acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a
liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia
acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade
era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à
espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio a abraçar-me os pés. Um dos
meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho), pegou de outra taça, e pediu à
ilustre assembleia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando
ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e
entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas
de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos
cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o
Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
– Tu és livre, podes ir
para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado,
um ordenado que…
– Oh! meu senhô! fico.
– …Um ordenado pequeno,
mas que há-de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente.
Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu.
Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos…
– Artura não qué dizê
nada, não, senhô…
– Pequeno ordenado,
repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu
papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
- Eu vaio um galo, sim, senhô.
– Justamente. Pois seis
mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo;
aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as
botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um
impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que
lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais,
quase divinos.
Tudo
compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns
pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo
filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!)
creio que até alegre.
O
meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus
eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na
modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele
teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar
(simples suposição) é então professor de Filosofia no Rio das Cobras; que os
homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à
lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre
retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para
satisfação do céu.
BOAS NOITES.
19
de Maio de 1888
in “Obra Completa”
Nota: Machado de Assis aborda
nesta crónica, ironicamente, o «fim da escravatura» consequente da assinatura oficial
da Abolição da Escravatura que decorreu no Brasil em 13 de Maio de 1888.
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