CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
(Itabira, Brasil, 1902 - Rio de Janeiro, 1987)
Poeta
***
Capítulo do Gênesis
1. E
o Senhor, vendo que os homens não melhoravam,
antes
se tornavam piores, decidiu mandar-lhes uma chuva de advertência; e com isso
lhes manifestava seu enfado, e que outro dilúvio não estaria fora de suas
cogitações.
2. E
a chuva começou a cair, a princípio alegre com seu destino de chuva;
insistente, depois, e zangada, fazendo aluir a morada dos homens.
3. E
os caminhos se encheram de lama, e na lama passavam cadáveres de criancinhas
com suas bonecas; e também boiavam corpos de velhos e de moços na fluorescência
do amor.
4. E
as águas cumpriram seu serviço e se retiraram ao cabo de um dia; e quedou sobre
a terra uma dor feita de mil dores.
5. Nisso
vieram os sábios da cidade e puseram-se a fazer a exegese da catástrofe; e
concluíram que todo mal provinha de certas povoações altaneiras, desligadas do
corpo social, a que se dava o nome de favelas.
6. As
quais dependuradas na crista e no declive dos morros, vertiam sobre a cidade,
com algumas notas de música, seus detritos e sua miséria, travando o escoamento
das águas.
7. E
individualmente se chamavam Querosene, Escondidinho, Pasmado, Pretos Forros,
Cabrito, Vintém, Cantagalo, Curral das Éguas, Nheco, Borel, Esqueleto, Catacumba
e apelativos que tais.
8. E
mereciam ser destruídas pelo que se escolheu a Favela da Catacumba, de nome
exemplar, para ser arrasada primeiro que as outras, e das outras a hora soaria
a seu tempo.
9. E
milicianos, na calada da noite, subiram até lá e arrasaram-na, ateando fogo aos
escombros e os sábios se persuadiram de que haviam acabado com a causa primeira
da enchente.
10.
Embora não houvessem acabado com a causa maior
das favelas; e os favelados foram recolhidos a uma casa de boa vontade, enquanto
seus pertences tomavam rumo de uma praça de jogos, Maracaná chamada.
11.
E havendo entre esses alguns tamboretes e cadeiras,
bem podiam ser aproveitados para assento de amadores das grandes justas e atletas,
que eram a glória da cidade.
12.
E reinou sobre o morro um silêncio catacumbal,
que nem a voz de um papagaio bicava.
13.
E seus amigos moradores, depois de alguns dias
na casa de asilo, subiram a outro morro ainda virgem e lá plantaram seus fogos e
entoam sua música.
14.
E outra vez choverá o aborrecimento de Deus,
e eles serão responsabilizados, expulsos, apartados de seus bens, e descobrirão
novos terrenos de cume, de onde voltarão a ser tangidos.
15.
E milicianos em número crescente desalojarão
ainda mais numerosos catacumbeiros.
16.
A menos que o Senhor, em sua ira, se lembre
de consumar a ameaça e promova a magna chuva final.
17.
Da qual ninguém escapará; e depois dessa ninguém
será acusado e molestado por ninguém.
18.
A menos ainda que, a poder de palavras e subtis
manobras, os sábios consigam desviar a atenção do Senhor para outros mundos ainda
mais errados que este.
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