Em Louvor das Crianças
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao
mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem
fronteiras, esse reino é o da infância.
A esse país inocente, donde se é
expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a
tais regressos se chama, às vezes, poesia.
Essa espécie de terra mítica é
habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu
modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido
o Paraíso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais
— a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer.
Elas não
conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-
Exupéry, o dinheiro e a vaidade.
Estas frágeis criaturas, as únicas desde a
origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o
peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade
humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão
monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da
bondade divina.
Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que
isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos.
O simples facto de
consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as
suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela
liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.
Eugénio
de Andrade, in “Rosto Precário”
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