CONFLITO ENTRE A POESIA LÍRICA PORTUGUESA E O CARDEAL
PATRIARCA DE LISBOA
Entre a poesia lírica
portuguesa e o sr. cardeal patriarca está a ponto de rebentar um grave
conflito, que decerto perturbará as boas relações em que até hoje têm
permanecido a igreja e as consoantes.
É o caso que, segundo uma
revelação feita, há dias, pelo Diário de
Notícias, o chefe da Igreja lisbonense não consente que os anjos do patriarcado tenham mais de dez
anos de idade, ao passo que os poetas líricos só os admitem de idade superior a
quinze, havendo mesmo alguns que mais os apreciam à proporção que eles vão
sendo mais durinhos.
Há mesmo quem
considere, como Balzac, que os anjos
só se podem julgar completamente feitos aos trinta anos.
Não desesperamos de ver a Igreja
chegar a um acordo com a poesia no interesse comum. Se se fosse a cumprir
rigorosamente à letra a provisão do austero prelado, a própria clerezia do
patriarcado seria a primeira a achar-se em graves embaraços, por ter de
despedir os anjos de maior idade, que
hoje estão ao serviço da Igreja.
E depois como seria triste
um trovador ter amanhã de pôr o seguinte comunicado nos jornais, dirigido ao
arcanjo dos seus sonhos…
O teu nome, anjo de
céu,
Foi uma estrela cadente,
Que às bicadas feneceu
Dos
corvos de S. Vicente!
Já não és anjo;
eu chamar-te,
Seria evocar o abismo!
Em ti leio, em qualquer parte
A certidão do baptismo!...
Sê tu anjo de
inocência,
E eu seja o próprio Petrarca,
Não o quer sua Eminência
O
cardeal Patriarca!...
in “O António
Maria” – jornal de humor político, editado e dirigido por Rafael Bordalo
Pinheiro (1846 - 1905) – edição de 2 de Outubro de 1879.
Imagem: pintura do alemão Egon Schiele (1890-1918)
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