segunda-feira, 23 de julho de 2018

ART BUCHWALD – Veneza à Hemingway



ART BUCHWALD
(EUA, 1925 – 2007)
Escritor, cronista, humorista
***
A sua coluna no “The Washington Post” foi publicada em mais de 550 jornais. Escreveu 30 livros. Too Soon to Say Goodbye (2006), foi a sua última obra.
Em 1986 foi eleito para a "American Academy and Institute of Arts and Letters".

***
                        
Veneza à Hemingway    

Todo aquele que vem a Veneza é influenciado, de algum modo, por um dos grandes escritores que escreveram acerca da cidade. Hemingway influenciou-se talvez mais que qualquer outro e se não fora Na outra margem entre as árvores, duvido que alguma vez gozasse o prazer de lá ir.
Vejamos, por exemplo, a noite em que com minha mulher fui jantar ao Gritti Palace Hotel. Foi um esplêndido jantar, um imponente jantar, um jantar de lagosta, e a lagosta era boa. Quando chegou vinha escura, verde, selvagem e custou uns dias de salário, mas depois de cozinhada ficou vermelha e não a trocaria por cinco fatos.
Olhei para a minha mulher, do outro lado da mesa. Estava encantadora. Quase tão encantadora como a lagosta. Apertei-lhe a mão com firmeza.
- Amo-te e gosto que sejas como és – disse-lhe. Filha, depois de jantar vamos dar um passeio de gôndola.
- Que negócio é esse de me chamares filha? – disse minha mulher. – E deixa de me apertar a mão com tanta força. Assim não posso comer a lagosta.

- Minha querida filha, minha pequena filha, minha única filha – disse eu. – Quem é o teu amor?
- Se me chamas filha mais alguma vez, atiro-te com a garrafa de vinho – disse ela. – E já que estás de maré, quererás dizer-me o que estiveste a fazer toda a tarde na praia com Gina Lollobrigida?
- Vamos, vamos, filha, não pensemos na Lollobrigida. Encontraremos uma gôndola, tu serás tu, eu serei eu e o gondoleiro será ele.
- Já te avisei acerca desse negócio da filha.

Saímos. Agora ela parecia-se mais com Mickey Mantle ou Bobby Feller.
Encontrámos uma gôndola comprida, boa, brava, verdadeira.
- Porque não alugamos antes um gasolina? – perguntou minha mulher. – Uma gôndola é terrivelmente lenta.
- Porque és minha mulher e estamos sós em Veneza, porque quero apertar-te nos meus braços e quero que tu também me apertes e porque, sempre fica mais barato que alugar um gasolina.
- O canal cheira mal – disse ela. Vamos voltar para o Lido e ver um filme. Vieste cá por causa do festival de cinema.
- Os filmes cheiram quase tão mal como o canal. Excepto aqueles em que intervêm Marlon Brando, Gary Grant e Frank Sinatra ou os que tratam dum número restrito de assuntos. Vamos ao Harry´s tomar uma última bebida antes de te beijar para todo o sempre e durante um dia inteiro.
- Quero voltar para o Hotel – disse a minha mulher. – A gôndola ou a lagosta fizeram-me mal.
- Qual delas, filha?
- Como diabo posso saber?
- Está bem, levo-te a casa e depois leio-te Dante. E agora, antes que fiques mesmo doente, filha, beija-me e aperta-me com força e sinceridade.
Deve ter sido o último filha, porque mal dei por mim estava dentro do canal com roupas e tudo. Mas era bom estar vivo, molhado e apaixonado em Veneza. Hemingway não deve ter passado dias melhores.



in “Mais Caviar”



Sem comentários:

Enviar um comentário

MALMEQUER

MALMEQUER Português, ó malmequer Em que terra foste semeado? Português, ó malmequer Cada vez andas mais desfolhado Ma...