FERNANDA DE CASTRO
(Lisboa, Portugal, 1900 – 1994)
Escritora
***
É difícil realizar um
poema, tecnicamente perfeito, sem que a técnica deturpe, diminua ou empobreça a
Ideia. É difícil construir uma obra musical sem que a carpintaria invisível
perturbe a pureza ideal dos sons; mais difícil, porém, é que dois seres humanos
se aproximem, na ânsia de se encontrarem, sem que fique reduzida a estilhaços o
puro cristal das suas almas!
Acordei esta manhã com
dores de cabeça e logo pensei que fosse um princípio de gripe. Mas não, eram os
sonhos, os sonhos desta noite, que não cabiam nem cabem nas quatro paredes da
minha cabeça. Desta vez não havia nestes sonhos nem monstros apocalípticos, nem
florestas eriçadas de setas ou de lanças, havia estrelas, havia música, havia
perfumes. Onde estaria? No Céu? Não, porque cheirava a mimosa, porque havia o
marulhar, quase o ciciar das ondas contra os rochedos. Na terra? Também não,
porque não sentia o chão debaixo dos pés, porque flutuava sem peso numa
atmosfera mais ténue, mais fluída. Onde, então? A meio caminho entre a Terra e
o Céu, onde os pesadelos se transformam em sonhos e os braços em asas?
in
“Ao Fim da Memória”
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