JÚLIO POMAR
(Lisboa, Portugal,
1926 - 2018)
Pintor
***
Picasso
- «Guernica»
A posição de «Guernica» na
obra de Picasso é a sua primeira olhadela deitada ao mundo em que os homens
vivem, amam, sofrem, morrem ou são mortos. Em Picasso, um novo caminho se
abria: o caminho da tragédia actual. Os fragmentos avulsos de que se servia
tinham encontrado tempo e lugar.
E agora, não era só a
Espanha que sofria, era a Europa inteira a experimentar o tacão nazi. Toda a
Europa se tornava vítima da suprema tourada, colhida a levada ao desespero. Goelas
abertas, punhos cerrados, dentes enormes, afiados como quando saíram do caos,
olhos sem órbitas faziam os últimos apelos, exalavam ódio em toda a linha, -
em toda a Europa. Pavor, devastação e morte, em toda a Europa. «Guernica» em
mil e uma cidades e aldeias da Europa.
A tragédia espanhola dera
sentido à obra de Picasso. A tragédia mundial iria permitir que Picasso
orientasse ainda mais a sua actividade, no sentido de uma cada vez mais franca
comunhão com os sofrimentos de todos os homens? Aos factos brutais que
arrancaram Picasso à sua solidão e originaram «Guernica», vinham sobrepor-se
outros, não menos brutais. A realidade ganhava formas insofismáveis. O
significado histórico de «Guernica», de todas as Guernicas, tornava-se dia a
dia mais cru. Os homens já não tinham lugar para dúvidas.
O solitário Picasso iria,
como «Guernica» indicava, trocar a sua solidão pelo convívio com as dores
comuns? O tempo presente manteria, nas suas telas, a posição conquistada por
«Guernica»? Qual poderia ser a índole dessas novas obras, geradas em meio desta
nova grande guerra, destruidora dos mitos e das condescendências? Qual a
reacção dos brônquios de Picasso a este ar tão diferente do da sua solidão?
in “Mundo Literário” – 1946 (excerto)
Imagem: pintura de Carlos Botelho
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