JOSÉ CARDOSO PIRES
(São João do Peso, Portugal - 1925 — Lisboa, 1998)
Escritor
***
O Príncipe
Real
Se há jardim de Lisboa que
me dê gosto maior é o do Príncipe Real. Primeiro, por causa da árvore-mãe que
tem ao centro, baixinha e de ventre antigo, e de ramagem tão extensa que dá
abrigo a meio mundo. Depois porque o conheci rodeado de poetas, uns em verso,
outros em prosa: O' Neill morou-lhe quase em frente, na rua da Escola
Politécnica, Vieira de Almeida mesmo ao lado, Ruy Cinatti na rua da Palmeira e
Agostinho da Silva na Travessa do Abarracamento de Peniche que é um recanto
pacífico para meditar. Isso para não falar já do Poeta Real que se chamava
Mendonça e que nunca escreveu coisíssima nenhuma na vida, pelo menos que se
saiba.
Fizemo-lo poeta, eu e alguns amigos, porque se passeava no jardim
acompanhado dum pato-negro, com a solenidade dum letrado do Olimpo. Alguém que
numa cidade se passeia com um pato é poeta ou tem alma disso. No entanto, se
nós, em vez de poeta, o tivéssemos feito Príncipe Real também não ficaria pior
porque condizia com a majestade com que ele atravessava a paisagem.
Finalmente o quiosque.
Importante não esquecer o quiosque neste jardim porque ali se servia a melhor
ginja-com-elas de Lisboa ao balcão da janelinha e sabiam-se enredos que se
passavam a toda a volta. Enjaulado no seu posto, o patrão da ginjinha, tabacos
e lotarias, contava casos de sentimento, velhices adormecidas, drogados de
aflição e tudo o mais que ocorria naqueles bancos à beira-relva.
Assim, com a bebida e a
conversa pelo meio, iam correndo as nossas tardes, até que por volta das cinco
horas dava entrada no jardim o príncipe do pato-negro. Gravata de seda-luto,
penteadíssimo em negro espelhado, seguia por entre flores e relvados, de cabeça
levantada e olhar perdido como se andasse no horizonte do mundo, indiferente a
tudo mais.
Mas sabia-se olhado como
uma aparição enigmática - e esse era o seu orgulho, não tenho dúvida. Por
alguma razão alguém se exibe em público com um pato e, ainda por cima, um pato-negro
com uma pena amarela levantada em arco na cabeça.
"Trata-se dum pato
chinês", dizia o dono do quiosque. "Daí aquela pena amarela".
in “A cavalo no Diabo” (excerto)
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