sexta-feira, 6 de julho de 2018

JOSÉ CARDOSO PIRES – O Príncipe Real



JOSÉ CARDOSO PIRES
(São João do Peso, Portugal - 1925 — Lisboa, 1998)
Escritor

***

O Príncipe Real

Se há jardim de Lisboa que me dê gosto maior é o do Príncipe Real. Primeiro, por causa da árvore-mãe que tem ao centro, baixinha e de ventre antigo, e de ramagem tão extensa que dá abrigo a meio mundo. Depois porque o conheci rodeado de poetas, uns em verso, outros em prosa: O' Neill morou-lhe quase em frente, na rua da Escola Politécnica, Vieira de Almeida mesmo ao lado, Ruy Cinatti na rua da Palmeira e Agostinho da Silva na Travessa do Abarracamento de Peniche que é um recanto pacífico para meditar. Isso para não falar já do Poeta Real que se chamava Mendonça e que nunca escreveu coisíssima nenhuma na vida, pelo menos que se saiba. 

Fizemo-lo poeta, eu e alguns amigos, porque se passeava no jardim acompanhado dum pato-negro, com a solenidade dum letrado do Olimpo. Alguém que numa cidade se passeia com um pato é poeta ou tem alma disso. No entanto, se nós, em vez de poeta, o tivéssemos feito Príncipe Real também não ficaria pior porque condizia com a majestade com que ele atravessava a paisagem.

Finalmente o quiosque. Importante não esquecer o quiosque neste jardim porque ali se servia a melhor ginja-com-elas de Lisboa ao balcão da janelinha e sabiam-se enredos que se passavam a toda a volta. Enjaulado no seu posto, o patrão da ginjinha, tabacos e lotarias, contava casos de sentimento, velhices adormecidas, drogados de aflição e tudo o mais que ocorria naqueles bancos à beira-relva.

Assim, com a bebida e a conversa pelo meio, iam correndo as nossas tardes, até que por volta das cinco horas dava entrada no jardim o príncipe do pato-negro. Gravata de seda-luto, penteadíssimo em negro espelhado, seguia por entre flores e relvados, de cabeça levantada e olhar perdido como se andasse no horizonte do mundo, indiferente a tudo mais.

Mas sabia-se olhado como uma aparição enigmática - e esse era o seu orgulho, não tenho dúvida. Por alguma razão alguém se exibe em público com um pato e, ainda por cima, um pato-negro com uma pena amarela levantada em arco na cabeça.

"Trata-se dum pato chinês", dizia o dono do quiosque. "Daí aquela pena amarela".



in “A cavalo no Diabo” (excerto)



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