Mário de Carvalho (Lisboa, Portugal, 1944).
É autor de contos, romances, peças e argumentos,
com livros publicados em vários países.
Palavras de Mário
de Carvalho:
"Os contemporâneos sempre se enganaram sobre a valia das
obras dos escritores do seu tempo.”
Fantasia para Dois Coronéis e uma
Piscina (excerto):
“Assola
o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de
tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, “ensembles”, coros.
Desde os píncaros de Castro Laboreiro ao Ilhéu de Monchique fervem rumorejos,
conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os
vagares de muitos e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros
despautérios, frouxas produtividades e más-criações.
Fala-se,
fala-se, fala-se, em todos os sotaques, em todos os tons e decibéis, em todos
os azimutes. O país fala, fala, desunha-se a falar, e pouco do que diz tem o
menor interesse. O país não tem nada a dizer,
a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de
aturdimento mais à mão.
(...) Telefones móveis! Soturna apoquentação!
Um país tagarela tem, de um momento para o outro, dez milhões de íncolas a
querer saber onde é que os outros param, e a transmitir pensamentos à
distância.
Afortunados ventos que batem todas as altitudes e pontos cardeais e levam as
mais das palavras, às vezes frases inteiras, parágrafos, grosas delas, para as
afogar no mar, embeber nos lameiros de Espanha, gelar nos confins da Sibéria,
perder nas imensidades do éter.
É um favor de Deus único e verdadeiro. O país
pereceria num sufoco, aflito de rouquidões, atafulhado de vocábulos, envenenado
de sandices, se a Providência caridosa lhos não disseminasse por desatinadas
paragens.”
Mário de Carvalho
Imagem:
pintura de Paul Klee (Suíça, 1879 –
1940).
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